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A evolução e o desfecho desta crise são imprevisíveis, mas uma coisa é certa: o poder imperial e unipolar dos EUA vive seu estertor
22 de fevereiro de 2022
Jeferson Miola (*)
Por meio dos monopólios hegemônicos de comunicação, os EUA e aliados europeus tentam emplacar uma narrativa que estigmatiza a Rússia pelos acontecimentos na Ucrânia. Para isso, retomam a cartilha maniqueísta da guerra fria e se apresentam como os mocinhos heróicos que protegem a Europa e o mundo ocidental das ameaças dos “bárbaros caucasianos”.
Os precedentes do atual conflito evidenciam, porém, que a realidade é bastante diferente da versão propagada pelas grandes potências ocidentais e mídia hegemônica. Nos anos 2012/2013, no contexto da ofensiva para expandir os domínios da influência imperial estadunidense no leste europeu e aumentar o cerco estratégico-militar da OTAN à Rússia, os EUA financiaram e instrumentalizaram agrupamentos de ultradireita, em grande número integrados por neonazistas, com o objetivo de desestabilizar o governo pró-russo de Viktor Yanukovytch.
Em novembro de 2013 a onda desestabilizadora
desaguou em um “movimento cívico” nos mesmos moldes das “primaveras árabes” e
das “jornadas de junho do Brasil”. Este movimento em nada cívico,
porque incensado desde o estrangeiro, exigia a integração da Ucrânia com a
União Europeia e o ingresso do país na OTAN.
Não por coincidência, as reivindicações da Euromaidan – Europraça,
em ucraniano, como ficou conhecida a onda de protestos na Ucrânia – eram
exatamente as mesmas de outros movimentos e processos estimulados e financiados
pelos EUA mundo afora: corrupção, crise econômico-social e violação dos
direitos humanos.
Com a escalada golpista e o ascenso de movimentos
independentistas e separatistas de resistência, o país ficou fraturado e
dividido. Em fevereiro de 2014, o presidente Viktor Yanukovytch foi destituído
em um processo de impeachment que foi classificado como golpe
de Estado pelo governo russo.
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Como a intromissão na Ucrânia, os EUA e aliados europeus finalmente conseguiram instalar no comando do país um governo anti-Rússia e pró-OTAN. Mais além da identidade étnica-cultural e do mercado de consumo de cerca de 44 milhões de pessoas, a Ucrânia é central para os russos, pois conforma o extenso cinturão de segurança na fronteira da Rússia.
A Ucrânia legou da era soviética a indústria
aeronáutica e de alta tecnologia e é importante produtor de alimentos do mundo.
O gasoduto que ainda transporta o maior volume do gás russo vendido à Europa
atravessa o território ucraniano. Já está finalizada, mas pendente de
certificação pela Alemanha para iniciar as operações, a linha Nord
Stream2 do novo gasoduto, de 1.224 Km, através do Mar Báltico e não
pelo território ucraniano.
Empresas estadunidenses como a Chevron e a Exxon
Mobil possuem contratos de pesquisa, extração e exploração de gás na Ucrânia.
Além dos lucros extraordinários destas multinacionais norte-americanas de
petróleo e gás, os investimentos visam diminuir a dependência energética e,
portanto, política, da Rússia.
O fator geopolítico é, contudo, o mais relevante
nesta disputa. Os EUA enxergam no projeto de Vladimir Putin uma estratégia de
“ressovietização” da Europa Oriental para o país avançar no tabuleiro mundial
como uma hiperpotência.
Hillary Clinton, Secretária de Estado do governo
Barak Obama [2009/2016], insinuou que o esforço de Moscou de integração
regional “vai ser chamado de união aduaneira, de União Eurasiática ou
qualquer coisa assim. Mas não devemos nos enganar. Nós sabemos qual é o
objetivo e vamos pensar em meios efetivos de freá-lo ou impedí-lo”, ela
declarou em 6/12/2012 [O Estado de SP].
O establishment estadunidense vê a
Ucrânia como peça-chave para o reerguimento do império soviético. Zbigniew
Brzezinski, que foi Secretário de Estado de Jimmy Carter [1978/1982], escreveu
em 1997, recém completados 6 anos depois da dissolução da URSS:
A Ucrânia, novo e importante espaço
no cenário eurásico, é uma coluna geopolítica porque a sua própria existência
como país independente consente a transformação da Rússia. Sem a Ucrânia a Rússia deixa de ser um
império eurásio. A Rússia sem a Ucrânia pode ainda lutar pela sua
situação imperial, mas será apenas um império substancialmente asiático,
provavelmente enredado em conflitos deteriorantes com as nações da Ásia
Central, que seriam sustentadas pelos Estados Islâmicos, seus amigos do Sul.
[…] Os Estados que merecem o maior apoio geopolítico americano são o
Azerbaijão, o Uzbequistão e (fora desta área) a Ucrânia, pois todos os três são
pilastras geopolíticas. Pode-se dizer que a Ucrânia é o Estado essencial, pois influenciará a evolução futura da
Rússia.” [entrevista a Maurizio Blondet, 1997].
O aparente avanço geopolítico e geoestratégico da
OTAN com a ofensiva de 2014 foi mais virtual que real. A intromissão
estrangeira na Ucrânia desencadeou uma forte reação russa e, também, a
emergência de forças separatistas, pró-russas e anti-OTAN em algumas regiões do
país.
Como efeito imediato, ainda em 2014 a Rússia anexou
Criméia e Sevastopol depois que estas regiões se declararam unilateralmente
independentes da Ucrânia e pediram anexação ao país. E, no último dia 21/2, o
governo Putin reconheceu oficialmente a independência autodeclarada das regiões
Donetsk e Luhansk.
Os acontecimentos na Ucrânia são, como se percebe,
desdobramentos previsíveis da esperada reação russa às políticas
intervencionistas dos EUA e OTAN no leste europeu. Putin sempre deixou claro
não admitir nenhuma espécie de expansão da OTAN que possa colocar em risco a
segurança da Rússia.
A mídia monopólica mundial, controlada desde
Washington, distorce a realidade e replica a narrativa russofóbica que é
repetida pelos meios de comunicação colonizados ao redor do mundo como verdade
absoluta.
A disputa geopolítica em andamento deverá acelerar
as mudanças do sistema mundial na direção do multilateralismo.
Por enquanto, Putin, que é apoiado pela China, está
vencendo esta batalha. Com inteligência estratégica, sem disparar um único
tiro, ao passo que os EUA e a OTAN são os grandes perdedores.
Com a proposta sino-russa de reconfiguração da
ordem mundial apresentada por Xi Jinping e Vladimir Putin por ocasião dos Jogos
de Inverno, em Pequim, a hegemonia dos EUA ficou seriamente questionada e a
OTAN perdeu totalmente sua razão de ser e existir.
A evolução e o desfecho desta crise são
imprevisíveis, mas uma coisa é certa: o poder imperial e unipolar dos EUA vive
seu estertor.
Integrante do Instituto de Debates,
Estudos e Alternativas de Porto Alegre (Idea), foi coordenador-executivo do 5º
Fórum Social Mundial
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