FOLHApress - IGOR GIELOW
ter., 25 de janeiro de 2022
SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) - A grave
crise no Leste Europeu que opõe a Rússia de Vladimir Putin à Ucrânia e ao
Ocidente, representado pela sua aliança militar, a Otan, pode trazer a guerra
de volta ao solo europeu.
Ao mesmo tempo, as negociações em
torno do impasse testam duas décadas de política de Putin e talvez seu futuro
político -no poder desde 1999, ele mudou a Constituição e pode tentar ficar no
cargo até 2036.
O presidente da Rússia, que assumiu
sobre as ruínas dos dez anos de crise após o fim da União Soviética, trabalhou
um plano geopolítico claro. Críticos o acusam de buscar restaurar o império
comunista, mas suas preocupações são as mesmas de governantes do maior país do
mundo desde tempos imperiais: aumentar a distância entre seu território e os
adversários, perdida quando a união caiu, em 1991.
Há outros pontos, como a proteção de
russos étnicos que ficaram para trás, e a manutenção da popularidade, que tem
na ideia de uma Rússia forte um de seus pilares. O adversário, claro, é a Otan,
liderada pelos vencedores da Guerra Fria, os EUA.
Três décadas depois, o Ocidente se vê
encurralado pelos russos na Ucrânia, uma crise que Putin tenta resolver com um
xeque-mate -ou um ippon, para ficar no judô que aprecia. A Folha de S.Paulo
resume o caminho que trouxe os dois países com os maiores arsenais nucleares do
mundo frente a frente, novamente.
O que está acontecendo na Ucrânia agora?
No começo de novembro, Putin deslocou
mais de 100 mil soldados e equipamentos para áreas próximas, relativamente, da
Ucrânia. O vizinho, os EUA e a Otan o acusaram de planejar uma invasão militar,
que ele nega.
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Mas o que existe lá que interessa a
Putin?
Em 2014, o governo pró-Rússia de Kiev
foi derrubado (golpe ou revolução, depende de quem conta). Putin percebeu que a
Otan e a União Europeia poderiam absorver o vizinho e agiu, promovendo a
anexação da Crimeia, um território étnico russo que havia sido cedido à Ucrânia
nos tempos soviéticos, em 1954. E fomentou uma guerra civil de separatistas
pró-Kremlin na região do Donbass, no leste da Ucrânia, que está no centro da
confusão agora.
A ONU disse o quê?
Ela não reconhece a Crimeia russa.
Alguém reconhece?
Apenas oito aliados do Kremlin. Mas,
na prática, a anexação é vista como um fato consumado na comunidade
diplomática.
E as áreas autônomas?
Aqui a coisa complica. Primeiro,
porque não são tão homogêneas etnicamente; segundo, porque Putin não jogou todo
seu peso militar para apoiar de forma decisiva os rebeldes.
Mas isso não o interessava?
Anexar o Donbass seria muito mais
complexo e caro, além de ter evidente custo militar e humano. A prioridade de
Putin é outra: evitar que a Ucrânia, ou qualquer outro país ex-soviético, entre
na Otan e, de forma talvez mais secundária, na União Europeia.
Por quê?
Historicamente, os russos têm o seu
flanco mais vulnerável no Leste Europeu. Por isso, tanto o Império Russo quanto
a União Soviética ou dominavam ou tinham aliados na região. O ocaso soviético
fez com que parte desses países fosse absorvida na esfera ocidental, e em 2004
a expansão da Otan chegou a três repúblicas que eram da união: Estônia, Letônia
e Lituânia. Isso foi a gota d'água para Putin.
Mas isso não seria uma questão dos
países?
Sim, é o que diz o direito
internacional e a lógica ocidental, quando lhe interessa. Politicamente,
contudo, os EUA se comportaram como vencedores pouco magnânimos da Guerra Fria,
perdendo a oportunidade de atrair a Rússia para uma parceria mais estável com
seus aliados europeus.
E então Putin agiu. Ele primeiro
travou uma guerra em 2008 na Geórgia, um país pequeno numa região explosiva, o
Cáucaso, uma das rotas históricas de invasões e guerras -no caso, contra a
Turquia. Nos dias de hoje, o problema lá é a infiltração de radicais islâmicos,
como as duas guerras que Moscou lutou na Tchetchênia, que faz parte de seu
território, demonstraram. No caso georgiano, o então presidente do país tinha
uma atitude agressiva e foi visto como imprudente ao provocar os russos, dando
a desculpa para que eles atacassem em nome da minoria étnica que povoa duas
áreas do país. Resultado, hoje a Geórgia não controla 20% de seu território, o
que na prática impede que ela se una à Otan.
Que é exatamente o que Putin queria.
Sim, e é o motivo pelo qual ele é visto como um vilão no Ocidente, pelo uso de
força bruta quando acha necessário. O passo seguinte foram as ações na Ucrânia,
em 2014.
E as sanções ocidentais tiveram
efeito?
Há uma pressão sobre a Rússia, mas
especialistas se dividem sobre o real impacto, porque a resultante das sanções
foi um incremento no mercado interno, o maior descolamento do sistema
financeiro internacional e uma certa diversificação da economia, que ainda é
dependente da exportação de hidrocarbonetos (petróleo e gás).
E a Europa segue comprando gás russo.
O gasoduto Nord Stream 2, completado no ano passado, permitirá à Rússia, quando
a Alemanha liberar sua operação, retirar boa parte do trânsito do gás natural
que vende aos europeus por meio de velhas linhas que passam pela Ucrânia.
Assim, Kiev pode perder boa parte dos US$ 2 bilhões anuais que aufere em taxas.
O Nord Stream 2 e seu irmão em operação, o ramal 1, ligam a Rússia à Alemanha
pelo mar Báltico. Hoje, 40% do gás que a Europa consome vem do país de Putin, e
os EUA lutam para inviabilizar o gasoduto porque consideram que os europeus
fazem jogo duplo.
Por que a Ucrânia não entrou na Otan
e na UE?
Pelo mesmo motivo da Geórgia: as
regras dos clubes não permitem países com conflitos territoriais ativos. Isso
torna conveniente o discurso ocidental, já que ninguém quer pagar para ver em
um confronto direto com a Rússia. Assim, Kiev recebe apoio e algum armamento da
Otan, mas não se espera tropas em solo para sua defesa.
E o que acontece agora?
Putin quer ver implementados os
Acordos de Minsk 2, de 2015, que congelaram a guerra civil no Donbass. Só que
eles preveem um grau de autonomia às áreas russas que Kiev não aceita. Ao
deslocar tropas, insinua que pode usar a força como em 2014, o que alguns acham
ser blefe.
Por quê?
Porque o Exército ucraniano não pode
derrotar o russo, mas causar um bom estrago. E uma invasão implicaria anexação
de áreas, o que custa bilhões que Putin não dispõe. Fora o risco de a Otan
mudar de ideia e defender Kiev, o que arriscaria uma escalada perigosa, talvez
nuclear. Não por acaso, as cinco potências atômicas se comprometeram
recentemente a nunca iniciar uma guerra com essas armas.
O que está sendo negociado?
Russos e ocidentais não avançaram nas
negociações iniciadas em meados de janeiro para debater os termos apresentados
por Putin para pacificar a região. Ele "trucou", pedindo compromisso
do fim da expansão da Otan e retirada de forças da aliança de membros que
entraram após 1997, ou seja, todo o bloco que era comunista. Isso não será
aceito, mas pode haver concessões pontuais e o reinício de negociações sobre a
Ucrânia, o que já será vendido em Moscou como uma vitória do líder.
E qual a resposta?
Até aqui, é não, mas o fato de que
diversas frentes de negociações foram abertas traz a esperança de que algum avanço
venha a acontecer.
Se não der certo, pode haver guerra?
Sim, o risco é real, embora não seja
necessariamente o cenário mais provável. Putin tem na mesa opções mais
drásticas e perigosas, como tentar invadir totalmente a Ucrânia e depois deixar
o país sob condições de que nunca entre na Otan, ou ações mais pontuais.
E a Otan, faria o quê?
Joe Biden cometeu um erro e admitiu
que uma ação limitada não deveria trazer as sanções econômicas devastadores que
promete aplicar ao Kremlin em caso de invasão. Tentou corrigir, mas o estrago
foi feito. Além disso, países como a Alemanha, o mais forte economicamente da
Europa, são reticentes em um embate direto com Putin, explicitando o racha na
aliança.
Mas a Otan não reforçou suas
fronteiras com caças e navios?
Sim, foi uma sinalização política,
embora do ponto de vista militar não deverá fazer grande diferença, até porque
não pretende defender diretamente a Ucrânia. Ainda assim, os EUA colocarem
soldados em alerta é sempre um sinal forte.
E a crise recente no Cazaquistão,
como se encaixa nisso?
Há duas teorias sobre o fato de
protestos legítimos contra o aumento de combustível terem quase virado uma
revolução, com gente armada nas ruas. Primeiro, que foi fomentada pelo Ocidente
para enfraquecer Putin. Segundo, que foi obra do Kremlin para, resolvida
rapidamente, o colocar em posição de força. Seja o que for, Putin saiu
fortalecido.
Há outras implicações?
A crise aproximou ainda mais a Rússia
da China, que deu apoio a Putin e disse que ambos os países precisam se defender
juntos do Ocidente. É uma tendência que já estava colocada, mas que pode ter
efeitos no futuro próximo.
Há alguma chance de uma Terceira
Guerra Mundial com a China e a Rússia de um lado, e o Ocidente, do outro?
Isso é especulação pura, até porque tal conflito
não interessaria a ninguém e teria uma grande chance de acabar com a
civilização. Ainda assim, não passou despercebido que a China reiniciou seu
embate com os EUA no Indo-Pacfício, reagindo a exercícios de dois porta-aviões
americanos na sua vizinhança com mais uma grande incursão aérea contra Taiwan.
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