Coluna mensal da Fração Nacional de Saúde do PCB
Autor: Rômulo Caires
No final de setembro, a advogada Bruna Morato, representante de médicos e ex-médicos da Prevent Senior, denunciou formalmente na CPI da Pandemia a operadora de saúde por acordos com o governo federal para a testagem e disseminação de tratamentos sem eficácia para a Covid-19, além de crimes como alterações de prontuários para falsificar atestados de óbito.
O caso tem gerado grande comoção e revolta em
alguns setores da população brasileira, como também vem suscitando amplos
debates sobre o seu significado. Há uma tendência, principalmente entre os
analistas dos grandes veículos de comunicação, em tratar a Prevent Senior como
um caso isolado e sem maiores relações com a dinâmica da conjuntura brasileira.
Tal lente de análise faz parecer acidente, imperícia e erro técnico onde há
planejamento e intenção. Nosso objetivo aqui é, ao contrário, elucidar as
determinações que tornaram possível o caso Prevent Senior e indicar sua relação
com a mercantilização da saúde e com o capitalismo brasileiro.
Ao investigar as origens da Prevent Senior, deparamo-nos com um roteiro ideal para mais uma versão da mitologia liberal da meritocracia. Nascida no final dos anos 90 a partir da compra de uma única ambulância, a empresa foi ampliando seus negócios até se tornar uma grande operadora de planos de saúde. A Prevent Senior vinha atuando com uma estrutura verticalizada, ou seja, ela é também dona de redes de hospitais, laboratórios e serviços diagnósticos, com foco no público idoso.
A
empresa chegou a ser destaque por dez anos seguidos nos noticiários por conta
de sucessivos recordes de faturamento e por apresentar preços atrativos a um
público geralmente preterido por outras operadoras. O sucesso da empreitada já
vinha influenciando outras empresas, especialmente porque o modelo
verticalizado permite um controle mais rígido sobre seus gastos e sobre a mão
de obra, além de também propiciar maior flexibilidade diante dos instrumentos governamentais
de regulação.
Em abril de 2020, no início da pandemia de Covid-19, um dado chamou a atenção do Ministério da Saúde: a taxa de mortalidade em um dos hospitais gerenciados pela Prevent Senior era muito maior do que taxa média brasileira. A situação foi denunciada ao Ministério Público de São Paulo, mas prontamente a denúncia foi arquivada.
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Neste mesmo período, foi muito forte a propaganda de políticos da
extrema-direita ao redor do mundo sobre as vantagens do chamado “tratamento
precoce”, que, mesmo contraindicado por entidades científicas, foi tomado como
via régia para mitigar os efeitos da doença na população e evitar a execução de
medidas mais enérgicas como o bloqueio da circulação de pessoas e a interrupção
dos serviços não-essenciais da economia. Em um texto anterior (1), avançamos na
discussão sobre as origens e consequências do “tratamento precoce” no Brasil, a
propaganda destas formas de tratamento pelas entidades médicas brasileiras e o
chão histórico da formação social brasileira que permitiu o desenvolvimento de
tais fenômenos. Voltaremos em alguns destes argumentos para elucidar melhor o
caso Prevent Senior.
Desde a primeira denúncia da Prevent Senior ao MP-SP até as que foram realizadas na CPI da Pandemia, passaram-se mais de ano e centenas de milhares de mortes. Lembremos que a CPI surgiu, dentre outros fatores, da enorme pressão popular nas ruas, que combateu sistematicamente as palavras de ordem obscurantistas do bolsonarismo, além de cobrar a saída do presidente e sua corja, lutando pelo incremento da campanha de vacinação no país.
Tais fatos permitiram que o fenômeno ignorado em abril pudesse vir à luz. Desmentindo a suposta autonomia absoluta defendida pelo CFM, o que se viu foram médicos denunciando a operadora pela prática sistemática de assédio moral aos trabalhadores, que eram obrigados a prescrever medicações danosas, indicar tratamentos experimentais sem nenhuma liberação das agências reguladoras, modificar prontuários e persuadir familiares a liberarem seus entes queridos para o chamado “tratamento paliativo”. Este tratamento busca diminuir o sofrimento e permitir maior bem-estar de pacientes que geralmente estão em estágio terminal de doenças como o câncer, mas que no caso em questão visava somente abrir leitos de UTI e diminuir os custos, já que esse tipo de tratamento não é indicado para a Covid-19.
Tais
medidas garantiram um faturamento de R$ 4,3 bilhões à Prevent Senior em 2020,
além de 68% na taxa de sinistralidade, índice que mede a relação entre quanto a
operadora recebe e o quanto ela gasta com os serviços de saúde prestados, menor
do que a média brasileira de 74%. Estes fatos indicam o óbvio: os lucros da
Prevent Senior ficaram muito acima da vida de seus clientes. Resta ainda
elucidar melhor como um caso muito mais aparentado com as experimentações
nazistas pôde acontecer em uma instituição teoricamente preocupada com a saúde.
Um fato que nos ajuda a compreender melhor a situação está indicado em documentos vazados conhecidos como Pandora Papers. Nestes documentos, constam nomes de uma série de políticos e empresários de vários países que depositaram vastas quantias de dinheiro em paraísos fiscais. Lá constam os nomes dos irmãos Andrea, Eduardo e Fernando Parrilo, donos da Prevent Senior, além do nome do atual ministro da economia Paulo Guedes.
Como tais nomes estariam ligados? Na própria CPI da Pandemia a
advogada Bruna Morato explica: o governo federal e o Ministro da Economia
queriam evitar a qualquer custo avançar em medidas consagradas mundialmente no
combate à pandemia de Covid-19 tais como o “lockdown” e as políticas de
vacinação. O que ficou muito conhecido como “negacionismo” poderia ser melhor
analisado como um procedimento da burguesia brasileira para não frear suas
taxas de lucro. O governo federal e a base bolsonarista deram todo o apoio aos
experimentos da Prevent Senior, chegando a imaginar que dali sairiam
tratamentos inovadores que colocariam o Brasil na vanguarda do combate à
pandemia.
Nesse sentido, cabe criticar dois aspectos da leitura hegemônica sobre o caso Prevent Senior: primeiramente, que haveria meras falhas técnicas ou falhas morais de alguns sujeitos na condução da pandemia. Esse tipo de leitura simplesmente ignora a formação histórica da burguesia brasileira (2), o fato de que o Brasil emergiu de um violento processo de colonização e que, no decorrer da consolidação do seu Estado Nacional, a burguesia fez todo tipo de pacto “pelo alto” para evitar atender as demandas das classes trabalhadores e dos setores populares.
As
classes proprietárias nunca se interessaram em incrementar os instrumentos
democráticos e criar um autêntico sistema de proteção social que propiciasse
uma vida digna para o povo trabalhador. A prática sistemática de violação dos
povos originários e genocídio da população negra sempre garantiu “experimentos
sociais” que, ao invés de situar o caso Prevent Senior como mera contingência
de uma linhagem evolutiva “normal”, mostram as ligações deste fato com a
história da acumulação capitalista e dominação burguesa no Brasil.
Na mesma perspectiva, a própria saúde não pode ser tomada apenas como fato “técnico”. Depois de mais de 600 mil mortes de Covid-19 no Brasil e a partir da percepção dos setores mais atingidos pela doença, incluindo as populações periféricas, povos indígenas, população negra etc., não podemos postular uma suposta neutralidade científica na condução das práticas de saúde.
Além da doença estar determinada
histórica e socialmente, sendo constituída internamente pela interação dos
fatores biológicos com os pressupostos de uma determinada época e local
geográfico, as práticas de saúde informam medidas com consequências vastas na
sociedade, conformando-se, dentre outras coisas, como via normativa para as
ações, ou seja, como ideologia. Pois é justamente a partir de um plano de
governo, seguindo as intenções históricas da burguesia brasileira, que se
fundamentou uma série de práticas que deram origem à barbárie cometida não só
pela Prevent Senior, mas também por outras operadoras de planos de saúde.
Por último e não menos importante, trata-se de questionar a própria existência de operadoras de planos de saúde e demais instrumentos privados que compõem o sistema de saúde brasileiro. Retomamos o fato de que a Prevent Senior nasceu numa época em que já existia o Sistema Único de Saúde (SUS) e grande parte de seu crescimento se deu em período hegemonizado pelo Partido dos Trabalhadores. Parte da esquerda, ao se revoltar com razão contra a barbárie representada pelo caso Prevent Senior, apenas repetiu de forma esquemática que bastaria investir no SUS ou opor a saúde como direito contra a saúde como mercadoria sem maiores aprofundamentos na análise do processo de constituição do SUS e de suas contradições (3).
Apesar de o SUS ter sido uma grande vitória da classe
trabalhadora brasileira, tendo sido arrancado a partir de intensas lutas, o
processo se moveu dentro da dinâmica do desenvolvimento capitalista no Brasil.
Não bastaram formulações de leis e políticas públicas que indicassem a
universalização dos cuidados em saúde, pois o direito burguês não é imune à
lógica da acumulação, funcionando, na verdade, como uma das formas de
reprodução das relações sociais capitalistas. A diminuição do financiamento no
SUS se deu em paralelo ao incremento cada vez maior da força dos planos de saúde
privados, das grandes empresas de tecnologia médica e hospitalar, dos grandes
conglomerados de indústrias farmacêuticas etc.
Nesse sentido, o caso Prevent Senior representa mais uma página da barbárie capitalista, representa a progressão do descaso histórico com os setores mais empobrecidos e oprimidos da sociedade brasileiras. A “lógica colonial” por trás dos eventos mais macabros que foram denunciados na CPI da Pandemia não deve surpreender a quem conhece a fundo a história da formação social brasileira. Criticar a Prevent Senior é também criticar a burguesia brasileira e suas formas autocráticas de dominação, que colocam o lucro bem acima das vidas.
É também ter consciência de que as
práticas de saúde, justamente por lidarem com o que há de mais valioso (a
vida), não devem de nenhuma forma estar ligadas a mecanismos de acumulação
capitalista e à lógica da mercantilização. Acima de tudo é compreender que a
saúde deve ser direito de todos, mas o direito da classe trabalhadora não será
efetivado sem a construção de instrumentos de poder por esta mesma classe. A
saúde não deixará de ser mercadoria sem a modificação estrutural da sociedade
de classes.
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