Mauro Iasi analisa a possibilidade de ruptura institucional por parte do presidente miliciano diante das consequências dramáticas do caos pandêmico, dos acordos com o centrão e da crise com as forças armadas.
BLOG DA BOITEMPO
Por Mauro Luis Iasi
É inegável que o
presidente miliciano sempre teve como intencionalidade a ruptura institucional,
uma espécie de saudosismo do golpe de 1964 e da ditadura que se seguiu. Temos
afirmado com certa insistência em nossas colunas que o bufão na presidência
contava com certos recursos para, pelo menos, dar uma base aos seus arroubos,
principalmente no suposto apoio de segmentos das forças armadas, sua base
social apoiada nas milícias e nas organizações ditas religiosas, além da base
eleitoral que lhe auferiu os mais de 57 milhões de votos.
No entanto, devemos lembrar que tais recursos de nada serviriam se não houvesse uma certa condescendência do grande capital monopolista para com as visíveis trapalhadas do miliciano, uma vez que sua única função no cargo era dar sequência às reformas e medidas exigidas pelo capital e o deus mercado. Uma vez que tais medidas encontravam seu caminho, o suposto presidente ia se equilibrando no cargo apesar de tudo.
Nesta direção foi realizado um pacto entre os militares,
STF e parlamento para evitar a instabilidade de um possível impedimento do
presidente, seja por qualquer motivo entre os inúmeros à escolha (irregularidades
eleitorais na chapa Jair/Mourão, atentar contra as instituições com atos
antidemocráticos que o dito presidente conclamou e dos quais participou,
imiscuir-se na Polícia Federal para proteger sua família e amigos criminosos,
etc.).
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No momento do pacto, o principal fator de instabilidade era a clara intenção que partia de um executivo doentio em acirrar os ânimos para justificar uma ruptura. No entanto, o desenvolvimento da pandemia mudou este cenário. O negacionista no maior cargo da República, ainda que tenha recuado em nome do pacto com o Parlamento e o Supremo, abençoado e tutelado pelos militares no governo, se demonstrou uma fábrica de instabilidade para dar respostas à sua base social e eleitoral ou por qualquer outro motivo.
Relativizando a gravidade da doença, defendendo
ilusórios e irracionais métodos de tratamento preventivo, recusando-se a um
plano ordenado de isolamento social e medidas de proteção defendidas pela
ciência, desdenhando da importância da vacina e de medidas logísticas adequadas
para a imunização, acabou por jogar o país no caos pandêmico e suas dramáticas
consequências sociais e econômicas.
A troca de ministros da Saúde e, principalmente, os motivos de tais alterações, somados à atitude do mandatário maior da República, desmascaram a face grotesca do negacionismo, do irracionalismo e do total desprezo pela vida humana. Mas o capital e seu amigo imaginário, o mercado, não ligam para isso. Rodrigo Maia, fiel zelador do pacto, não viu nenhum motivo para impedimento.
O Supremo, com suas
inalcançáveis razões e fundamentos jurídicos, contentou-se com a gaveta
profunda para onde enviou os processos em andamento que serviram de munição
para o suposto pacto que deveria manter o ensandecido presidente no cercadinho.
O que ocorreu é que o desenvolvimento da pandemia, esperado e previsto pelos especialistas, mudou este cenário. O grande capital começa a traçar cenários menos idílicos para a retomada econômica, e a montanha de mortes diárias atinge aquela marca que passa a gerar “preocupações” para os donos da riqueza e do destino da nação.
Não se tratava mais de sete ou dez mil, que o desprezível dono da rede de
lanchonetes estava disposto a aceitar como um custo aceitável, ou mesmo os cem
mil que coexistiam com lucros aceitáveis e perspectivas de retomada que a
assustada economista saudava a cada edição do telejornal para desmentir na
próxima edição. É interessante o que o capital pode encarar como aceitável; o
que há de diferente entre os cem mil e os trezentos mil mortos, além da contabilidade
macabra de pessoas enterradas a cada dia?
O capital e seus diferentes setores – refiro-me ao capital monopolista e não à malta de supostos empreendedores descartáveis que se julgam ideologicamente mais do que de fato são para a cadeia produtiva – lucraram muito nesta época tenebrosa. Não me refiro aqui à aparência enganosa dos setores mais visíveis, como as televendas, os serviços de entrega, cursos on-line (todo mundo descobriu que podia tocar piano e era fácil, assim como praticar a marcenaria, pintura em aquarela e aplicar no mercado financeiro), mas se tais setores da distribuição e de serviços cresceram é porque mercadorias seguiam sendo produzidas, bancos continuavam financiando e cobrando dívidas.
É inegável o impacto para pequenos
comerciantes e outros ramos que certamente sofreram com restrições de seus
pequenos e médios negócios, mas houve crescimento de lucros e aumento da
riqueza e da concentração de forma significativa. Nesta fase a preocupação com
o distanciamento e as medidas de prevenção são seletivas. Fique em casa, lave
as mãos, use máscaras, lógico, se você não é um operário, um entregador de
aplicativo, uma faxineira, um profissional da saúde ou da segurança pública,
porque, se for o caso, você tem que sair de sua casa, pegar uma condução lotada
e fazer as coisas funcionarem.
Então, nesta faixa de
mortandade, algo ali entre os cem e trezentos mil mortos, tudo ia bem. Tal
sensação que o capital compartilhava com o negacionista com a faixa
presidencial era que um dia a pandemia ia passar e tudo voltaria ao normal,
quem morreu, morreu, quem lucrou lucrou. Como sempre, como em todos os anos
ditos normais em que a sanha do capital mata milhares de trabalhadores. Em 2019
o número de acidentes de trabalho cresceu 5,45%, passando de 341.700 para
360.320 mil. Entre 2012 e 2019, a cada 49 segundos um trabalhador sofria um
acidente de trabalho e a cada uma hora e três minutos um trabalhador morria em
decorrência de um acidente.
Sendo assim, por que da mudança de atitude do grande capital e seus serviçais togados ou investidos de mandatos parlamentares? Creio que o fato de o negacionismo presidencial passar a produzir uma instabilidade em duas frentes. A total desorganização na logística das vacinas acentua a gravidade da pandemia e, principalmente, incide sobre a perspectiva de saída da crise sanitária. A dimensão temporal aqui tem uma importância grande.
Tanto a população como os agentes econômicos podem
suportar catástrofes, desde que exista uma perspectiva de retomada mais
adiante. A falha grave na produção, compra e logística de vacinação torna
nebulosa a dimensão temporal e materializa as previsões de colapso. Isso
prejudica a almejada retomada da normalidade econômica e gera perigosos riscos
de instabilidade política e social.
Vejamos se está claro.
Queimar florestas, matar índios, assassinar opositores, entregar imensas áreas
urbanas para o controle de milícias, desmantelar universidades e centros de
pesquisa, impor cortes orçamentários que sufocam as políticas públicas e
sociais até a morte, desmontar a cultura nacional, desemprego em massa, mortes
por falta de oxigênio ou UTIs lotadas, sucatear a capacidade produtiva do país
e a infraestrutura pública, jogar milhares de famílias de volta à fome e à
miserabilidade absoluta podem ser aceitáveis, mas colocar em risco a
estabilidade que permite continuar a acumulação de capitais é preocupante.
Por esta razão era
necessário um ajuste no pacto. Agora deve-se incluir nas normas pactuadas (que
não sabemos quais são pois o pacto é secreto) que não basta não atentar contra
as instituições visando uma ruptura institucional, mas deve-se pensar também no
enfrentamento adequado da pandemia e de uma política de vacinação eficiente.
O operador desta
linha de ação no parlamento é o chamado centrão. O executivo emplacou o
presidente do Senado e da Câmara, mas estes senhores são operadores do pacto e
não do presidente. Exigiram e conseguiram a troca do ministro da Saúde e agora
do chanceler, impuseram uma mudança ministerial e cobraram a fatura no
orçamento desfigurado pelas emendas parlamentares e o cala-boca ao setor
militar em detrimento dos necessários investimentos e recursos para saúde,
ciência e tecnologia, educação e outras áreas incômodas para os sanguessugas
que nos governam.
Quanto aos militares é cedo para afirmar. É necessário separar o jogo de cena da saída do Ministro da Defesa e os chefes das forças armadas em solidariedade ao ministro. O (des)governo Bolsonaro não encontra apoio homogêneo nas forças armadas e sempre apresentou contradições, agora se soma mais esta. Mas a presença militar segue forte e expressiva no governo. Isto quer dizer que não creio, como alguns imaginaram esta semana, em rompimento dos militares com o governo.
Ficam e
continuam validando o pacto do qual são um dos principais protagonistas. O que
parece claro é que já buscam alternativas para o futuro e querem se
desvencilhar da responsabilidade com um governo que parece estar destinado à
lata de lixo (tóxico) da história.
O presidente, desculpem pelo eufemismo, está isolado e na defensiva e foi obrigado a ceder. Ele não está em um pacto por convencimento, mas por força da ameaça de retirá-lo do cargo e sabemos que existem os meios e os motivos para tanto (só Rodrigo Maia não os via). Cedeu na carne, desde a saída de Weintraub até agora com a saída escorraçada de Araújo nas Relações Exteriores.
Nos parece que os
pontos de resistência de Bolsonaro são os pontos que são essenciais para ele,
as posições que podem proteger seus filhos dos processos que fecham o cerco e
que podem levá-los à prisão e a promessa de não apeá-lo do poder via
impeachment.
Nestas condições, como fica a intenção miliciana de ruptura? Esta não é uma questão fácil de ser respondida. Estamos em uma disjuntiva que pode ser assim respondida. Quanto mais o presidente se vê acuado e perde a gestão efetiva de seu governo, maior é a tentação de golpe e menores as condições de efetivá-lo. Isso quer dizer que a possibilidade de golpe está longe de ser descartada, mas, caso ocorra, assumirá a forma de uma aventura sem base material de sustentação ou consolidação na ordem burguesa.
Dito de outra forma, os recursos que o suposto presidente da
República em exercício dispunha anteriormente se deterioraram (seja no apoio
militar e dos corpos policiais, seja nas milícias e igrejas S/As, seja na base
eleitoral). Principalmente, a sua funcionalidade para os interesses da
burguesia monopolista, mas o que lhe sobra é suficiente para uma reação
desesperada. Isto lhe dá o cacife suficiente para tentar se garantir no cargo e
protelar a ofensiva contra sua família criminosa, mas seus sonhos de ser a
cópia farsesca de Luís Bonaparte, que foi a farsa de Napoleão, parecem
distantes.
Suas esperanças
migram para 2022, na expectativa de que o desgaste de sua imagem e o abandono
de sua serventia para o capital não sejam capazes de corroer seu potencial
eleitoral para novamente ser a alternativa que resta à direita sem
alternativas.
Na último Café
Bolchevique, na TV Boitempo, Mauro Iasi parte de Lênin para compreender como é
possível agir em momentos de paralisia e derrota.
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