Mariana Sanches - @mariana_sanches - Da BBC News Brasil em Washington
sex., 9 de outubro de 2020 8:22 AM BRT
*ARQUIVO* Biden alcança maior vantagem de toda campanha sobre Trump a 26 dias da eleição. (Foto: Pedro Ladeira/Folhapress)
Se havia alguma
dúvida de que o presidente brasileiro Jair Bolsonaro (sem partido) e o presidenciável democrata Joe Biden estão em lados
políticos opostos, o debate entre Biden e o presidente Trump na última semana
tratou de dissipá-las. Na ocasião, Biden, favorito para vencer o pleito de 3 de
novembro pelas atuais pesquisas, criticou a devastação da Amazônia e aventou
até sanções econômicas ao país.
O meio ambiente,
no entanto, está longe de ser o único tema de discordância entre Biden e Bolsonaro. O
ex-vice-presidente americano está no centro de uma das empreitadas pelas quais
o atual presidente brasileiro mais demonstrou desprezo e resistência: a
apuração, pela Comissão Nacional da Verdade (CNV), de crimes e violações
cometidos por agentes públicos durante a ditadura militar, entre 1964 e 1985.
Em 17 de junho
de 2014, Biden, o então vice-presidente na gestão Barack Obama, desembarcou em
Brasília com um objeto especial na bagagem: um HD com 43 documentos produzidos
por autoridades americanas entre os anos de 1967 e 1977. A partir de
informações passadas não só por vítimas, mas por informantes dentro das Forças
Armadas e dos serviços de repressão, os relatórios americanos detalhavam informações
sobre censura, tortura e assassinatos cometidos pelo regime militar do Brasil.
Até aquele momento, a maior parte dos documentos era considerada secreta pelo governo dos Estados Unidos, que apoiou e colaborou com a ditadura durante boa parte do período em que os militares estiveram no poder. Biden sabia bem do que se tratava. E sabia também que produziria impacto real ao passar a mídia para as mãos da então presidente brasileira Dilma Rousseff, ela mesma uma das oposicionistas torturadas nos porões da ditadura.
É certo que o governo americano poderia ter enviado o material por internet, pela embaixada nos Estados Unidos. Mas a gestão Obama-Biden queria gravar seu nome no ato de abertura dos documentos, como um manifesto pela transparência e pelos direitos humanos. Mais do que isso, queria melhorar relações diplomáticas com base na troca de informações altamente relevantes para a história de países como Brasil, Argentina e Chile.
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No caso do Brasil, isso era ainda mais estratégico já que a revelação, meses antes, de que a Agência Nacional de Segurança americana (NSA, na sigla em inglês) havia espionado conversas da mandatária brasileira abalou o alicerce das relações entre os dois países. "Estou feliz de anunciar que os Estados Unidos iniciaram um projeto especial para desclassificar e compartilhar com a Comissão Nacional da Verdade documentos que podem lançar luz sobre essa ditadura de 21 anos, o que é, obviamente, de grande interesse da presidente", afirmou Biden, sorridente, ao lado de Dilma.
Sem ditadura
A própria definição dada por Biden do regime militar é hoje refutada por Bolsonaro, que nega ter havido ditadura no país. "Espero que olhando documentos do nosso passado possamos focar na imensa promessa do futuro", concluiu Biden. Cinco anos após esse encontro entre Dilma e Biden, o presidente brasileiro Jair Bolsonaro desqualificou por completo as revelações feitas pela CNV, das quais os documentos trazidos por Biden são peça fundamental.
"A questão de 64 não existem documentos se matou ou não matou, isso aí é balela, está certo?", disse Bolsonaro. O presidente respondia à imprensa, que questionava uma declaração sua dada no dia anterior para atingir o presidente da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), Felipe Santa Cruz. Bolsonaro disse pra Santa Cruz que poderia esclarecer a ele como seu pai havia desaparecido.
De acordo com a
Comissão Nacional da Verdade, Fernando Augusto Santa Cruz Oliveira, pai do
presidente da OAB, foi visto pela última vez em fevereiro de 1974, quando foi
preso no Rio de Janeiro por agentes do DOI-Codi. Oliveira jamais voltou a ser
visto. Ele morreu nas mãos dos agentes.
"Comissão
da Verdade? Você acredita em Comissão da Verdade?Você quer documento para isso,
meu Deus do céu? Documento é quando você casa, quando você se divorcia. Eles
têm documento dizendo o contrário?, acrescentou Bolsonaro.
Mas, afinal, o que
há nos documentos trazidos por Biden?
Documento enviado
pelo consulado americano do Rio de Janeiro descreve padrão de tortura
"O suspeito
é deixado nu, sentado e sozinho em uma cela completamente escura ou refrigerada
por várias horas. Na cela há alto-falantes, que emitem gritos, sirenes e apitos
em altos decibéis. Então, o detido é interrogado por um ou mais agentes, que o
informam qual crime acreditam que a pessoa tenha cometido e que medidas serão
tomadas caso não coopere. Nesse ponto, se o indivíduo não confessa, e se os
agentes consideram que ele possui informações valiosas, ele é submetido a um
crescente sofrimento físico e mental até confessar."
"Ele é
colocado nu, em uma pequena sala escura com um chão metálico, que conduz
correntes elétricas. Os choques elétricos, embora alegadamente de baixa
intensidade, são constantes e eventualmente se tornam insuportáveis. O suspeito
é mantido nessa sala por muitas horas. O resultado é extrema exaustão mental e
física, especialmente se a pessoa é mantida nesse tratamento por dois ou três
dias. Em todo esse período, ele não recebe comida nem água."
O texto acima é
um trecho de um documento de sete páginas enviado pelo consulado americano do
Rio de Janeiro ao Departamento de Estado, em 1973, e trazido por Biden em sua
visita.
A comunicação
diplomática informa que 126 pessoas teriam passado por tratamento parecido ao
relatado, além de outras formas de sevícias, como o "pau de arara". O
informe é feito não só com base em depoimentos de vítimas, mas de informantes
militares, cuja identidade aparece protegida por trechos apagados no documento.
Detalhes
"Esse é um
dos relatórios mais detalhados sobre técnicas de tortura já desclassificados
pelo governo dos Estados Unidos", afirmou à BBC News Brasil Peter
Kornbluh, diretor do Projeto de Documentação Brasileiro do Arquivo de Segurança
Nacional Americano, em Washington D.C.
Ainda de acordo com Kornbluh, "os documentos americanos ajudam a lançar luz sobre várias atrocidades e técnicas (de tortura do regime). Eles são evidências contemporâneas dos abusos dos direitos humanos cometidos pelos militares brasileiros. Quase todo o mundo acredita neles. As pessoas que preferem não reconhecer a verdade sobre o que foi feito são os Bolsonaros e aqueles que realmente cometeram esses crimes". Mas nem sempre Bolsonaro nega que a ditadura tenha cometido violações aos direitos humanos. Em julho de 2016, em uma entrevista à rádio Joven Pan, ele afirmou: "O erro da ditadura foi torturar e não matar".
E dois anos mais
tarde, em meados de 2018, quando já estava em pré-campanha presidencial,
confrontado com a informação de um relatório da CIA, aberto em 2015 no escopo
do mesmo projeto de desclassificação de Biden, que o presidente Ernesto Geisel
teria aprovado a execução sumária de adversários do regime, o atual presidente
disse à rádio Super Notícia: "Errar, até na sua casa, todo mundo erra.
Quem nunca deu um tapa no bumbum do filho e depois se arrependeu?
Acontece."
Tortura e morte
Um dos outros
documentos trazidos por Biden evidencia que a máquina repressiva da ditadura
brasileira não só torturou como matou. Nele, o cônsul-geral americano em São
Paulo, Frederic Chapin, afirma que ouviu o relato de "um informante e interrogador
profissional trabalhando para o Centro de Inteligência Militar de Osasco",
em São Paulo.
Telegrama de 1973
descreve a tortura de um policial e de uma amiga dele que, inicialmente, se
recusou a colaborar
Em um telegrama
de maio de 1973, Chapin escreve o seguinte: "Ele (o informante) explicou
como havia quebrado uma célula 'comunista' envolvendo um agente da polícia
civil. O policial foi forçado a falar depois de ter tomado choques elétricos
nos ouvidos e mencionou sua conexão com uma amiga, que foi imediatamente
detida. Ela não foi cooperativa, no entanto, então foi deixada no pau-de-arara
por 43 horas, sem alimentos ou água."
"Isso a
quebrou, nossa fonte contou. Tortura, de uma forma ou de outra, é prática comum
em interrogatórios em Osasco. Ele também nos deu um relato em primeira mão do
assassinato de um subversivo suspeito, o que chamou de 'costurar' o suspeito,
ou seja, dar tiros nele da cabeça aos pés com uma arma automática."
O termo
"costurar" seria referência a um método para desfigurar o cadáver e
evitar sua futura identificação.
Assassinatos
cometidos pela repressão
O cônsul Chapin
relata ainda que "vários agentes de segurança nos informaram que suspeitos
de terrorismo são mortos como prática padrão. Estimamos que ao menos doze
tenham sido mortos na região de São Paulo no ano passado (1972)".
Ao registrar as
mortes em São Paulo, Chapin aponta para a atuação do coronel do Exército Carlos
Alberto Brilhante Ustra, o chefe do DOI-Codi paulista, um dos principais órgãos
de repressão do país, entre 1970 e 1974. Ustra foi o primeiro militar
brasileiro a ser condenado civilmente pela Justiça pelos crimes de tortura. Ele
é também considerado um herói e uma referência por Bolsonaro, que já afirmou
ter como livro de cabeceira a obra de Ustra, A verdade sufocada.
"Sou
capitão do Exército, conhecia e era amigo do coronel, sou amigo da viúva. (...)
o coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra recebeu a mais alta comenda do
Exército, a Medalha do Pacificador, é um herói brasileiro", afirmou
Bolsonaro em 2016.
Enquanto era
deputado, no dia da votação da abertura de processo de impeachment da então
presidente Dilma Rousseff, naquele mesmo ano, Bolsonaro citou o militar em seu
voto: "Perderam em 1964, perderam em 2016. (...) Pela memória do coronel
Carlos Alberto Brilhante Ustra, pelo Exército de Caxias, pelas nossas Forças
Armadas, pelo Brasil acima de tudo e por Deus acima de todos, o meu voto é
sim".
"Só
terroristas"
Outro documento
da leva de Biden desafia um argumento central de Bolsonaro sobre o período: o
de que o regime militar só prendeu, torturou e matou "terroristas".
Em dezembro de
2008, quando o Ato Institucional número 5, instrumento da ditadura que cassou
liberdades individuais, completava 40 anos, o então deputado federal Bolsonaro
ocupou o plenário da Câmara para dizer: "Eu louvo os militares que, em
1968, impuseram o AI-5 para conter o terror em nosso País, (...) Mas eu louvo o
AI-5 porque, pela segunda vez, colocou um freio naqueles da esquerda que pegavam
em armas, sequestravam, torturavam, assassinavam e praticavam atos de terror em
nosso País".
Serviço diplomático americano no Brasil mandou uma comunicação ao Departamento de Estado registrando os relatos de um cidadão americano, Robert Horth, que havia sido confundido com um extremista e preso no DEOPS. Mas em outubro de 1970, o serviço diplomático americano no Brasil mandou uma comunicação ao Departamento de Estado registrando os relatos de um cidadão americano, Robert Horth, que havia sido confundido com um extremista e preso no DEOPS, a unidade de polícia política paulista.
Horth não era um comunista subversivo e afirmou aos diplomatas americanos que "cinco dos seis prisioneiros em suas celas eram absolutamente inocentes da acusação de subversão política". Outro documento, de dezembro de 1969, dá força ao questionamento sobre os crimes reais dos alvos escolhidos pela repressão ao informar que freiras dominicanas foram presas, humilhadas e torturadas em Ribeirão Preto.
"Mais do
que trazer novos fatos, os documentos americanos foram cruciais porque
comprovaram muitos fatos a partir de uma fonte insuspeita. Estamos, afinal,
falando de relatórios da diplomacia dos Estados Unidos, que não tinham qualquer
simpatia pelos oposicionistas de esquerda e que apoiavam os militares",
afirmou à BBC News Brasil Pedro Dallari, relator da CNV.
Prova de que o
governo americano era, naquele período, abertamente a favor do regime está em
uma comunicação do embaixador americano William Rountree de julho de 1972. Na
carta, ele alerta ao Departamento de Estado que qualquer tentativa de fazer
críticas públicas contra o que qualifica como "excessos" cometidos
contra os direitos humanos poderia "prejudicar nossas relações
gerais".
CNV
Os documentos americanos tornaram-se especialmente importantes para a CNV diante da negativa das Forças Armadas Brasileiras de oferecer evidências que corroborassem os depoimentos de vítimas de tortura em dependências militares. "Ao mesmo tempo em que chegavam os documentos americanos, recebíamos retorno dos militares dizendo que suas sindicâncias não localizaram nada", afirma Dallari. Kornbluh concorda que, enquanto muito da documentação brasileira do período pode já ter se perdido, os arquivos americanos são fonte importante para acessar a história brasileira.
"Parte dos
militares brasileiros esconderam com sucesso a maioria de seus próprios
documentos e mantiveram isso fora do escrutínio público. E conseguiram escapar
de qualquer tipo de responsabilidade legal por seus crimes contra os direitos
humanos. E então os documentos americanos fornecem um histórico fidedigno de
pelo menos alguns casos. E se as coisas mudarem no Brasil, essas são evidências
de crimes que ainda podem ser litigados", afirma o especialista, que
menciona a lei da Anistia, de 1979, que impediu a responsabilização criminal de
agentes e oposicionistas por crimes cometidos durante a ditadura.
Em 2014, durante
os trabalhos da CNV, o Exército brasileiro afirmou que não opinaria sobre o
reconhecimento do Estado Brasileiro em relação às torturas, enquanto a Força
Aérea e a Marinha disseram não ter provas para reconhecer, tampouco refutar as
acusações de violações de direitos humanos nas décadas de 60 e 70.
Embaixador escreveu
sobre não condenar excessos publicamente
O que o histórico
diz sobre relação Brasil-EUA em possível governo Biden?
Para Dallari, apesar de o golpe de 1964 ter recebido o apoio do governo americano, então sob a batuta do democrata Lyndon Johnson, nas últimas décadas, os democratas deixaram claro ter interesse em colaborar com processos de investigação sobre atrocidades cometidas pelos governos na região e o papel dos Estados Unidos nelas. "Eu não tenho porque duvidar que Obama e Biden tivessem real interesse em abrir essas informações. E o primeiro presidente americano a se opor a violações dos direitos humanos na região foi outro democrata, o presidente Jimmy Carter", diz ele, em referência ao presidente americano entre 1977 e 1981.
Na verdade, desde a administração Clinton, nos anos 1990, documentos secretos sobre ditaduras latino-americanas têm se tornado públicos. Mas foi na gestão Obama que essa abertura dos arquivos ganhou tons de política de relações exteriores, em algo que Kornbluh batizou de "diplomacia da abertura". Além do Brasil, Argentina e Chile também receberam acesso a documentos, em um esforço americano para melhorar sua imagem e seu relacionamento na região.
E com Biden e Dilma, o especialista afirma que esse tipo de diplomacia alcançou um de seus pontos mais altos, já que as relações foram reconectadas depois da visita de Biden em 2014. "Tenho certeza de que ele foi informado sobre o teor dos documentos. E é uma tarefa importante a de carregar esses documentos que descrevem violações graves dos direitos humanos durante a era militar. Certamente foi uma experiência de aprendizado para o vice-presidente Biden e um lembrete pungente para ele dos horrores cometidos", diz Kornbluh.
Em conversas com a BBC News Brasil, conselheiros da campanha de Biden têm dito que o tema dos direitos humanos é central para o candidato, especialmente na América Latina. Mas embora ainda exista um grande arquivo intocado sobre a história da ditadura do Brasil, especialmente de informações dos órgãos de inteligência como FBI e CIA, é improvável que Biden faça qualquer nova abertura se vencer as eleições.
Isso porque
documentos secretos americanos sobre outros países só podem se tornar públicos
se os governos dessas nações requisitarem acesso aos americanos. E hoje não há
interesse no governo brasileiro por esse tipo de informação.
"Naquele
momento, a abertura foi importante e ajudou os dois países a se reaproximarem.
Agora, em um possível governo Biden, com Bolsonaro no Brasil, é um contexto
completamente diferente. Mas se Bolsonaro cometer violações de direitos
humanos, a administração Biden agiria de modo muito mais rápido e negativo do
que Trump e pressionaria Bolsonaro a parar", diz Kornbluh.
EM TEMPO: E daí, Bolsonaro? Tem, ou não, "arminha" para Biden? Sem problema, pode ser de brinquedo. Agora durmam com essa bronca.
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