Rômulo Caires, médico na Atenção Primária à Saúde e militante do núcleo de saúde da Unidade Classista na Bahia
O Sistema Único de Saúde (SUS) foi elaborado no contexto das lutas pela reforma sanitária no fim dos anos 70 e decorrer da década de 80, intimamente ligadas a todo o processo de contestação da ditadura militar brasileira.
Com a promulgação da
constituição de 1988, a saúde passava a ser formalizada enquanto um direito
básico e dever do Estado e se iniciava a constituição de um sistema universal.
Apesar da força dos movimentos em torno da reforma sanitária, o SUS nasceu e se
estabeleceu abarcando amplas contradições, sendo constantemente atacado e
fragilizado.
Nesse sentido,
avaliar o impacto das novas medidas do governo bolsonarista no âmbito da
Atenção Primária a Saúde (APS) e na saúde de modo geral implica, ainda que
brevemente, analisar a formação do modelo de saúde brasileiro
pós-redemocratização, captando as tendências de seu desenvolvimento para
delimitar as rupturas e continuidades da política de saúde atual em relação aos
governos anteriores. Assim, a 8ª Conferência Nacional de Saúde estabelece um
marco, na qual os diversos setores do que poderíamos chamar de campo
democrático-popular e também setores mais radicalizados se aglutinaram em
discussões que culminaram na promulgação do SUS na constituição de 1988.
Tais lutas não se conformaram como meras singularidades da realidade brasileira, estando ligadas aos eventos político-econômicos que surgiram após o término da 2ª guerra mundial. O capitalismo se levantou de uma grave crise mundial a partir de um envolvimento cada vez mais ativo do Estado na economia, caracterizando o chamado Estado de Bem-Estar-Social. Ressalta-se que tal tipo de Estado existiu majoritariamente nos ditos países capitalistas desenvolvidos, enquanto a grande maioria dos países capitalistas vivia políticas mais ou menos repressivas, pouco atentas às demandas de seguridade social.
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No Estado de Bem-Estar-Social a
questão da saúde ganha formulações bastante complexas e se solidificam os
esforços em direção à edificação de um sistema que respondesse não apenas aos
eventos diretamente ligados à saúde, mas também a aspectos relacionados aos
determinantes sociais do bem-estar.
É nessa via que a Atenção Primária à Saúde se desenvolve enquanto um dos eixos centrais da proposta. Ela serviria como uma via de entrada, na qual os diversos cidadãos teriam acesso aos primeiros cuidados em saúde, além de ter um componente de integração com os demais níveis do sistema, agindo também como um polo ativo na prevenção e promoção da saúde. Analisando este documento nos dias de hoje nota-se o caráter essencialmente abstrato e formalista de suas propostas, pouco preocupado em delimitar as particularidades de cada região do mundo, além de projetar expectativas que se mostraram irreais.
Pode-se dizer que a declaração de 1978 demarca fundamentalmente a derrocada dos planos de seguridade social em escala mundial e o surgimento do neoliberalismo, no qual agências como o Banco Mundial e o FMI já tinham impacto decisivo em um processo de mitigação da ação estatal e da intromissão cada vez maior de componentes privatistas:
“Mas, a matriz político-ideológica da APS contemporânea foi construída nos anos
1960 do século XX e associava-se à ‘guerra contra a pobreza’ das Administrações
Kennedy e Jonhson quando floresceram os programas de medicina comunitária para
aliviar tensões sociais acumuladas pelas lutas dos negros americanos contra o
racismo e pelos direitos civis. Essas iniciativas foram difundidas
posteriormente através de fundações americanas como a Kellog e a Rockefeller,
além de organismos internacionais e da Igreja, para diversos países.” (PAIM,
2012)
A via brasileira de constituição da APS tem que ser analisada a partir do contexto da redemocratização, da ascensão das lutas da classe trabalhadora, mas acima de tudo, do estabelecimento de um processo de conciliação que marca a nossa constituição de 1988. Os movimentos ligados a Reforma Sanitária, que aglutinavam desde segmentos radicais da esquerda até setores mais centralizados, objetivaram uma ampla reforma do sistema de saúde brasileiro, mas conviveram desde sempre com as contradições de uma tentativa de construção tardia do Estado de Bem-Estar-Social.
O SUS já se formou em pleno avanço do
neoliberalismo no mundo e apesar das intenções mais progressistas, sempre
esteve ameaçado. O subfinanciamento foi a tônica constante e tentativas de
conciliar o sistema com as demandas dos planos de saúde e das grandes empresas
de tecnologia médica mostraram constantemente a impossibilidade de realização
de um autêntico sistema universal sob o domínio do capital. Além disso, a
precarização das relações trabalhistas a partir da terceirização de amplos
setores da saúde e a adoção de mecanismos de gestão públicos-privados
contribuíram para uma grande desmobilização dos setores mais combativos.
O golpe de 2016, a
reforma trabalhista e a EC 95 deram um ar ainda mais trágico a uma situação já
complicada. É nesse contexto que devemos analisar as novas propostas do governo
Bolsonaro para financiamento da APS. Apesar da impossibilidade já apontada em realizar
um autêntico sistema universal numa sociedade capitalista e da invasão
constante dos componentes privatistas da estratégia neoliberal, não podemos
descartar os avanços que tal sistema de saúde representou para a sociedade
brasileira:
“apesar do subfinanciamento crônico, dos problemas da gestão, da privatização do setor e da sabotagem dos governos. Destacaria o reconhecimento legal do direito à saúde, a descentralização da gestão, o controle social, a ampliação da atenção primária vinculando 60% da população brasileira às equipes de saúde da família e o desenvolvimento da vigilância em saúde. Além disso, o SUS dispõe de uma rede de instituições de ensino e pesquisa que interage com os serviços de saúde, possibilitando que um conjunto de pessoas adquiram conhecimentos, habilidades e valores vinculados aos seus princípios e diretrizes.
Um legado de avanços pode
ser identificado na realização de transplantes, no Samu e no controle do
tabagismo, do HIV/aids e da qualidade do sangue. E o país também avançou no
desenvolvimento de sistemas de informação em saúde, importantes para o
monitoramento e avaliação, bem como na pesquisa e na avaliação tecnológica em
saúde.” (PAIM, 2018)
Ainda que devamos questionar se o que se chama de “controle social” não tenha justamente possibilitado o esvaziamento das lutas extra-institucionais e concentrado a atuação política nos espaços alinhados ao projeto neoliberal, ou que o próprio modelo de Estratégia de Saúde da Família deva mais ao Banco Mundial do que muitos estão dispostos a afirmar, o projeto bolsonarista de novo financiamento para a APS tende a radicalizar uma tendência já presente anteriormente: a precarização dos serviços públicos de saúde, que passariam a funcionar cada vez mais como um “serviço pobre” para “pessoas pobres”.
A primeira das modificações importantes elencadas pelo novo financiamento (BRASIL, 2019) refere-se ao modo como as verbas serão repassadas aos municípios brasileiros. Se antes o financiamento seguia uma lógica de captação fixa e captação ponderada, na qual havia garantias de financiamento independente do quantitativo bruto de pessoas cadastradas, a partir das novas resoluções o financiamento será feito levando-se em conta apenas a captação ponderada, ou seja, a quantidade de usuários cadastrados.
A perspectiva de unidades de saúde ligadas a territórios
específicos será diluída por uma visão individualista, que no limite perde de
vista o caráter ativo da APS, que ao se ligar a um território pode agir
diretamente a partir da prevenção e promoção da saúde. Ainda cria uma pressão
por cadastramentos totalmente irrealista, sendo que as projeções mais otimistas
apontam para diminuições da captação de verbas que podem chegar a 50% dos
valores anteriores.
Uma segunda medida é que todas as unidades serão avaliadas por indicadores de desempenho extremamente simplificadores. Por exemplo, a saúde da mulher será resumida a quantidade de exames citopatológicos de colo uterino, na qual se percebe a extrema vulgaridade de considerar que a saúde de uma mulher se resuma ao seu colo do útero.
A saúde da criança passará a ser contabilizada apenas pela cobertura vacinal de poliomielite inativada e pentavalente, o cuidado das doenças crônicas significarão apenas medições de pressão arterial e realização de um teste laboratorial para detecção da glicemia média em diabéticos (chamado de hemoglobina glicada). Ainda mais grave é a proposta de uma “carteira de serviços”, que impulsionará ainda mais a substituição da abordagem personalizada por outra focada no número de procedimentos realizados. Existirão apenas indivíduos atomizados, com suas demandas retiradas de seus contextos de vida.
A saúde mental e as
políticas de drogas também sofreram duros ataques. As medidas antimanicomiais e
a política nacional baseada na redução de danos vão sendo substituídas pelo
retorno das internações compulsórias, estímulo da criação de Hospitais
Manicomiais e retorno das bárbaras políticas de abstinência. É notório o
fortalecimento das parcerias com os setores mais conservadores representados
pelas igrejas neopentecostais e o afastamento dos princípios preconizados pela
Reforma Psiquiátrica.
Dessa forma, o cenário atual coloca a necessidade de um diagnóstico preciso do processo que nos trouxe até aqui. A reforma sanitária antes de constituir como uma mera política pública emergiu em um contexto de intensas lutas promovidas pela classe trabalhadora e setores populares. O enfraquecimento de tal reforma deve ser analisada não apenas como um aspecto conjuntural, mas ligado aos limites do próprio movimento democrático-popular.
Houve essencialmente a falsa crença de
que a formação de blocos hegemônicos ligados à luta por direitos e reformas sem
a estratégia de contestação radical da ordem capitalista conseguiria angariar
frutos em longo prazo. A ampliação das lutas foi constantemente seguida de
medidas conciliatórias, que ao fim e ao cabo apaziguaram e silenciaram a
própria classe trabalhadora. A radicalização do desmonte da saúde promovida
pelo governo Bolsonaro aponta a urgência de um balanço crítico do período da
redemocratização, apontando os limites do reformismo e a atualidade da estratégia
socialista e da Revolução Brasileira.
REFERÊNCIAS:
1) Declaração de Alma-Ata. Conferência Internacional sobre cuidados primários de saúde; 6-12 de setembro 1978; Alma-Ata; USSR. In: Ministério da Saúde (BR). Secretaria de Políticas de Saúde. Projeto Promoção da Saúde. Declaração de Alma-Ata; Carta de Ottawa; Declaração de Adelaide; Declaração de Sundsvall; Declaração de Santafé de Bogotá; Declaração de Jacarta; Rede de Megapaíses; Declaração do México. Brasília (DF): Ministério da Saúde; 2001.
2) Paim, J. S. Atenção Primária à Saúde: uma receita para todas as estações?. Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v.36, n.94, p.343-347, 2012.
3) Paim, J.S. SUS é mais do que uma política de saúde pública: Entrevista especial com Jairnilson Paim. Instituto Humanitas Unisinos, São Leopoldo, 2018. Disponível em: www.ihu.unisinos.br/159-noticias/entrevistas/581727-sus-e-mais-do-que-uma-politica-de-saude-publica-entrevista-especial-com-jairnilson-paim.
4) BRASIL. Ministério da Saúde. Portaria Interministerial n. 2.979, de 12 de
novembro de 2019. Disponível em: <
http://www.in.gov.br/en/web/dou/-/portaria-n-2.979-de-12-de-novembro-de-2019-227652180>.
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