Será que gosta de se amostrar (grifo do Blog) |
Juliana Gragnani - @julianagragnani - Da BBC News Brasil em Londres
BBC News
Brasil, 8 de junho de 2020
Bolsonaro andou a
cavalo em manifestação a seu favor em Brasília
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Quando as mortes por coronavírus no Brasil
passaram de 5.000, no dia 28 de abril, o presidente Jair
Bolsonaro comentou: "E daí? Lamento. Quer que eu faça o
quê? Eu sou Messias, mas não faço milagre".
Quanto passaram de 10 mil, no dia 11
de maio, Bolsonaro lamentou pela primeira vez as mortes: "Olha, eu lamento
cada morte que ocorre a cada hora. Lamento. Agora, o que nós podemos fazer é
tratar com devido zelo recurso público. Em vez de fazer a notinha de pesar, que
eu acho válido, eu também sou pesaroso a essas questões… Tem que dar exemplo,
gastar menos".
Quando uma apoiadora pediu uma mensagem de conforto para as famílias em luto no Brasil, e o país superava 30 mil mortes, nesta semana, no dia 2 de junho, Bolsonaro respondeu: "A gente lamenta todos os mortos, mas é o destino de todo mundo".
Essa "impiedade" do
presidente da República, nos olhos da psicanalista e escritora Maria Rita Kehl,
se aproxima da psicopatia. A designação define pessoas com traço comportamental
em que há falta de remorso ou empatia com o próximo, entre outras
características.
"É muito difícil fazer
diagnóstico de alguém que não conhecemos", diz ela. "Mas a minha
impressão desde a campanha é que ele está mais próximo daquilo que a gente
chama de psicopata."
Para ela, a impossibilidade da
despedida de parentes ou amigos mortos na pandemia é traumática e pode levar a
processos de luto mais longos e melancólicos. Kehl compôs a Comissão Nacional
da Verdade, que investigou os crimes da ditadura militar no Brasil. Ela compara
o luto pela morte de pessoas na pandemia ao luto pelos desaparecidos na
ditadura.
Por telefone de casa, em São Paulo, à
BBC News Brasil, Kehl falou sobre a pandemia, Bolsonaro e a "tristeza e indignação
coletivas" que os brasileiros sentem. Seu livro "Ressentimento"
será relançado em agosto pela editora Boitempo, com edição revista e
atualizada.
Leia abaixo trechos da entrevista.
BBC News Brasil - Pessoas estão perdendo familiares e amigos sem poder
se despedir. Qual é o peso disso para o luto?
Maria Rita Kehl - Comparo com a
impossibilidade do luto dos desaparecidos na ditadura. O desaparecimento depois
de um tempo indica que foram mortos, mas os corpos nunca foram localizados.
Sabemos do desespero desses familiares. Até hoje desaparecem pessoas no Brasil,
mas em geral nas periferias, pessoas negras, mortas pela polícia.
A morte é um fenômeno difícil de
simbolizar... De repente o corpo está, mas a pessoa não está. Por isso que não
tem uma cultura tão primitiva que não tenha um ritual de sepultamento em
homenagem a seus mortos.
De modo que só posso imaginar que [no
caso dos mortos por coronavírus] deve ser um luto quase impossível. Só não é
tão impossível quanto a dos familiares dos desaparecidos porque a morte foi
real, aconteceu.
Já é ruim o suficiente em qualquer
morte. Agora, as pessoas não podem ver, não podem sepultar. Seu parente entra
no hospital, depois você fica sabendo da morte e não pode nem ver o corpo. Isso
é muito traumático. Tenho impressão que essas pessoas vão ter processos de luto
mais complicados, mais longos, melancólicos do que os processos de luto que já
são tristes de pessoas que a gente sepulta.
BBC News Brasil - E como as pessoas estão lidando com a pandemia? Há um sentimento generalizado de medo?
Kehl - Não há um só
padrão. Por exemplo, se nós temos um presidente da República que diz que é uma
"gripezinha", e que diz "lamento, todo mundo morre", embora
esteja havendo uma pandemia e muitas pessoas estejam morrendo porque estão
acreditando que podem ir pra rua, meu temor é que não seja só uma
insensibilidade que machuca - porque machuca, evidentemente. Mas que seja uma
insensibilidade que produz essa insensibilidade numa parte da população.
Porque esse mecanismo de defesa -
quer dizer, no caso do presidente acho que é pura canalhice, mesmo - pode se
tornar um mecanismo de indiferença, de desidentificação, "não é
comigo", "não vou lamentar pelos outros porque acontece com os
outros, mas não está acontecendo comigo nem com meus familiares".
Nesse momento, a solidariedade é tão
necessária, nem que seja apenas simbólica, mandando cartas para os jornais,
mandando dinheiro para lugares que fecharam, para alguém na rua com fome. Isso
também é jeito bom de diminuir nossa angústia. "Diante desse horror que
está acontecendo, posso fazer alguma coisa para os vivos?"
Essa é uma das reações que, embora
seja generosa, também é egoísta porque nos tranquiliza um pouco. Você pode
sentir que está preso em casa, mas está ajudando alguém. Tem esses dois lados.
Sem solidariedade, sobra a barbárie.
Porque daí é um salva-se quem puder e
dane-se quem não puder se salvar ou quem está correndo mais risco. É muito
horroroso. Eu não sei nem qualificar direito o quanto isso é horroroso.
BBC News Brasil - Nesta semana, com mais de 30 mil mortos no Brasil, o
presidente Bolsonaro disse: "Lamento todos os mortos, mas é o destino de
todo mundo". O que isso revela sobre ele?
Kehl - Falta de empatia é
o mínimo. É muito difícil fazer diagnóstico de alguém que não conhecemos, a
gente já erra o diagnóstico de quem está no nosso consultório, no nosso divã.
Imagina de alguém sobre a qual só temos notícias pelos jornais. Mas a minha
impressão desde a campanha é que ele está mais próximo daquilo que a gente
chama de um psicopata.
Um psicopata não é necessariamente um
serial killer (um assassino em série). Digo porque geralmente quando aparecem
essas figuras a imprensa começa a noticiar que são psicopatas. São pessoas que
não têm divisão subjetiva. Divisão subjetiva significa "bom, eu corri
demais, atropelei aquela criança", justifico dizendo que minha mãe estava
doente, mas ao mesmo tempo eu me sinto angustiada. Mesmo quando fazemos algo
muito ruim, como esse exemplo horroroso de atropelar uma criança, algo em nós
não nos deixa em paz. E mesmo quando é uma coisa que a gente faz movida pela
raiva. Você envenena o cachorro do vizinho que não te deixa dormir. Alguma
coisa em nós sofre, mesmo pessoas más, sem consciência, egoístas, alguma coisa
em nós sofre. O fato de ter que justificar já mostra que não é tão tranquilo
quanto parece.
Vou dar só a definição do que é um
psicopata para as pessoas pensarem se isso tem a ver com essa figura que ocupa
a Presidência: o psicopata não tem essa divisão que diz: "Eu fiz, mas não
deveria ter feito". "Eu fiz porque eu fui obrigada, mas eu sinto
alguma culpa". Ele não tem. Ele não tem nenhuma empatia com o outro.
Essa resposta [sobre os mortes por
coronavírus] é de um tal grau de impiedade… Não é só que ele não tem estatura
para ser presidente do Brasil, isso a gente já sabe desde o começo, quando ele
não comparecia a debates e xingava as pessoas. Ele não tem estatura humana
naquilo que a gente considera que são alguns traços mínimos para você ser
considerado um homem. Um homem humano.
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Protesto contra o
governo destaca frase de Bolsonaro sobre mortes por covid-19
BBC News Brasil - E qual é a importância, para uma sociedade, que seu
líder lamente os mortos do país?
Kehl - Os gestos
simbólicos são muito importantes. Vou fazer uma porcentagem meramente
imaginária: é como se 30% para nós fossem questões materiais, como comer,
morar, por exemplo, e 70% fosse esse outro campo que é o simbólico, que é o das
trocas de linguagem, expressões, dos laços que se formam. O que distingue o
humano de qualquer outra espécie é a capacidade da linguagem. E a linguagem é
tudo o que dispomos quando não dispomos de mais nada.
As pessoas que ficaram em campos de
concentração conseguiram escrever diários e livros. Algo como: "Eu estou
aqui em condições subumanas, desumanas, mas eu ainda sou um ser humano". O
que distingue o humano é isso, é a capacidade de registrar simbolicamente
alguma coisa sobre sua vida e comunicar simbolicamente alguma coisa sobre sua
vida ou a vida coletiva, o entorno.
Bolsonaro usa outros gestos
simbólicos que não é o lamento. Diz algo como: "não é problema meu".
E não é só não lamentar, é não fazer atos com consequências para diminuir a
pandemia.
Meu temor é que a sociedade
brasileira se torne menos solidária. Não que antes ela tenha sido muito
solidária: o Brasil foi o último país livre a abolir a escravidão, por exemplo.
Tivemos 300 anos de escravidão. E quando acabou escravidão também não houve
teve nenhuma reparação. Temos uma população afrodescendente muito mais pobre
porque seus bisavós, quando acabou a escravidão, foram jogados na rua. Coisas
horríveis que estão no nosso DNA histórico, que já é uma sociedade menos
generosa com o outro…
No entanto, a presença simbólica, o
discurso, os atos de quem governa a sociedade produzem diferença. Quando o
governo Lula criou o Luz Para Todos ou as cotas nas universidades, por exemplo.
Foi uma coisa importantíssima, como forma tardia mas bem-vinda de reparação da
desigualdade causada pela escravidão. Foi um ato que produz solidariedade.
Os gestos simbólicos daquele governo
foram de inclusão, de promover igualdade, de promover a solidariedade, muito
diferente dos gestos simbólicos desse governo de agora.
BBC News Brasil - A sra. escreveu um livro sobre ressentimento. Existe
ressentimento na ascensão da extrema direita?
Kehl - O
ressentimento tem esse "re" porque é um sentimento requentado,
digamos assim. É uma disposição psíquica de alguns sujeitos quando eles não
querem aceitar consequências dos seus gestos errados. Não aceita que é
responsável por algo que o prejudicou. Então fica procurando um culpado. Depois
passa o resto da vida remoendo isso: esse é o ressentimento.
Me parece que alguns votos
bolsonaristas são votos ressentidos. É muito difícil saber do que se ressentem.
De terem sido coniventes com a ditadura e vem Comissão da Verdade e mostra os
horrores todos que aconteceram?
Ou o ressentimento de classe de quem
no Brasil durante tanto tempo teve todas as prerrogativas… E veja, ninguém
perdeu. Os ricos enriqueceram mais, só que os pobres tiraram o pé da lama. As
prerrogativas dos ricos no Brasil são tão de exclusividade que geraram esse
ressentimento.
Claro que tem ressentidos que votaram
no Bolsonaro, mas tem gente que já era antipetista desde sempre e tem gente que
apostou nesse plano econômico do Paulo Guedes, que é um plano para favorecer
quem já é favorecido.
BBC News Brasil - Nesta semana, o ex-presidente Lula criticou os manifestos suprapartidários em defesa da democracia e se recusou a assiná-los. Existe também ressentimento por parte dele?
Kehl - O Lula é
político até o último fio de cabelo. E não político no sentido de que queira
ser candidato de novo. Eu não sei que ele está certo ou errado. Sinceramente,
acho que ele tinha que aderir a esse movimento. Mas eu acho que o cálculo dele
é político, não é porque ele é ressentido contra o Marcelo Freixo ou o
Guilherme Boulos, por exemplo. Mas não sei julgar se esse cálculo político é
certo ou errado.
Ressentimento é quando você se
encolhe, não faz o que tinha que fazer e depois culpa o outro. Eu também não
perdoo pessoas que apoiaram o impeachment da Dilma - que foi um golpe. Isso não
é ressentimento. Eu acho que o Lula deveria fazer essa denúncia, mas assinar,
porque o nome dele tem muito peso, mas eu entendo. O impeachment da Dilma foi
um golpe que abriu a porteira para isso que tá aí agora. E não considero que
toda essa revolta seja um ressentimento. Ao contrário, a revolta é o contrário
do ressentimento. Ressentimento é remoer, revolta é dizer: "Com vocês não
falo mais".
BBC News Brasil - Estamos vivendo um luto coletivo durante a pandemia?
Kehl - Há um luto
por parte das pessoas de bem. Porque sabem que há uma pandemia, que ela está
sendo minimizada, que atitudes cientificamente comprovadas para diminuir o
contágio não estão sendo tomadas, sabem que essa pandemia combinada com
escalada da pobreza no Brasil está misturando quem morre de covid-19 com quem
morre de fome, de gripe, de desnutrição.
É um sentimento de enorme tristeza.
Não é questão de direita e esquerda, é solidariedade humana básica.
É um luto coletivo e uma indignação coletiva, vamos
lembrar isso. Tem uma tristeza coletiva porque está morrendo muita gente. Cada
dia a gente vê nos jornais, estamos agora com mais de mil mortos diários. Claro
que tem tristeza enorme com isso, mas tem também uma indignação. A pandemia
talvez não fosse evitável, mas com algumas políticas públicas simples e de
contenção, ela podia não ser tão catastrófica. E aí um presidente que diz
"Ah, todo mundo morre, e daí?"... Como se as mortes fossem naturais.
Não, são mortes por descaso.
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