sábado, 16 de maio de 2020

Instituições respondem com 'luvas de pelica' a risco de Bolsonaro à democracia, diz cientista político

© Divulgação/Francisco Cerchiaro.


BBC NEWS

 'Nem Fernando Collor nem Dilma Rousseff investiram contra a democracia', diz Abranches sobre presidentes que sofreram impeachments, em contraste com Bolsonaro, que trabalha 'contra a democracia de dentro'.

O cientista político Sérgio Abranches vem defendendo nos últimos anos que o impeachment é um "processo traumático" e uma "ruptura política grave" na jovem democracia do país, e também sintoma das disfunções do nosso modelo político — um presidencialismo multipartidário fragmentado, que exige do Planalto uma grande esforço para cultivar uma coalizão no Congresso; e um federalismo com forte concentração de poder pelo governo federal.

Como destaca em seu livro Presidencialismo de coalizão - Raízes e evolução do modelo político brasileiro (Companhia das Letras, 2018), dois impeachments em 30 anos colocam em dúvida "se é possível falar num regime institucional totalmente funcional". Ainda assim, diante de dezenas de pedidos de impeachment que já se acumulam na Câmara contra um novo alvo sentado na cadeira da Presidência, Abranches diz à BBC News Brasil que um processo para retirar Jair Bolsonaro é necessário, pois seu governo é, ele próprio, "uma ruptura indesejável para a democracia brasileira".

"É isso que faz toda a diferença: nem Fernando Collor nem Dilma Rousseff investiram contra a democracia. Na verdade, eles respeitaram muito a regra do jogo", afirmou em entrevista por telefone no último dia 11, referindo-se aos ex-presidentes brasileiros que foram vítimas de impeachments.

Já as respostas com "luvas de pelica" do Congresso e do Judiciário às atitudes de Bolsonaro mostram que o risco para a democracia é ainda maior, pois as próprias instituições que devem garantir seus princípios não estão usando seus poderes para isso, critica Abranches — se bastando com notas de repúdio como se fossem "grêmios estudantis" ou uma "entidade da sociedade civil" qualquer.

Ainda que defenda a saída de Bolsonaro, o cientista político é cauteloso ao avaliar a probabilidade de que o impeachment ocorra — sobretudo pelos sinais que o presidente da Câmara, Rodrigo Maia, vem dando. No entanto, ele reconhece que alguns dos principais ingredientes necessários para a "receita" do impeachment já rondam Bolsonaro, sobretudo a baixa popularidade e uma base fraca no Congresso.

Após a entrevista por telefone da BBC News Brasil com o cientista político, houve um novo capítulo na relação entre Maia e Bolsonaro. Na quinta-feira 14, após Bolsonaro reclamar de Maia em reunião com empresários, por sua condução de medidas provisórias na Câmara, os dois tiveram uma reunião. Depois dela, o presidente da Câmara afirmou a jornalistas que defendeu ao presidente buscar os "pontos que unem": "o importante é que todos possam voltar a sentar à mesa e discutir os caminhos".

No Judiciário, Abranches reconhece como a primeira "ação séria" contra o comportamento de Bolsonaro o inquérito em curso, relatado pelo ministro do STF Celso de Mello, para apurar a possibilidade de interferência inapropriada do presidente na Polícia Federal. O inquérito foi motivado por acusações do ex-ministro da Justiça Sergio Moro.

Na entrevista, o cientista político também falou da aproximação entre Bolsonaro e parlamentares do Centrão; e das disputas no federalismo brasileiro expostas pela pandemia de coronavírus.

Confira os principais trechos da entrevista.
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BBC News Brasil - O senhor costuma se referir ao impeachment como um processo traumático, sinal de uma democracia ainda instável. No mandato atual, partidos até mesmo de oposição, como o PT, hesitaram em assumir um clamor pelo impeachment de Bolsonaro com argumentos parecidos. Um eventual impeachment dele seria uma ruptura indesejável para a democracia brasileira?

Sérgio Abranches - Não, porque o governo Bolsonaro é uma ruptura indesejável pra democracia brasileira. Isso é o que faz toda a diferença. Nem Fernando Collor nem Dilma Rousseff investiram contra a democracia. Na verdade, eles respeitaram muito a regra do jogo. Recentemente, eu estava escrevendo um artigo sobre a importância dos politólogos passarem a analisar a questão do meio ambiente, e eu falava da importância que o Brasil já teve nesses fóruns multilaterais, que está perdendo completamente porque o governo Bolsonaro está destruindo a diplomacia brasileira e as políticas de proteção à biodiversidade e de combate à mudança climática.

Eu lembrei que Collor, em um dos momentos mais dramáticos do escândalo que levou ao impeachment dele — as acusações de seu irmão —, estava presidindo as reuniões de chefes de Estado durante a Rio-92. E ele a presidiu com a maior tranquilidade. Ele deixou todo o processo correr sem nenhuma tentativa de interferir na liberdade das instituições que investigavam, e nem na liberdade de imprensa, apesar de evidentemente estar indignado com as coisas que saíam.

No caso da Dilma, ela não tentou interferir de forma alguma, e durante os governos do PT, não houve nenhuma tentativa de ingerência do governo federal no Ministério Público Federal (MPF).

Agora, estamos vendo exatamente o contrário. O presidente ofende a imprensa, tenta interferir na autonomia da Polícia Federal. Já interferiu na autonomia do MPF com a nomeação de um candidato fora da lista (tríplice, com indicação de nomes pelos próprios procuradores, como era de praxe nas outras gestões), e que tem despachado com o presidente no Palácio do Planalto, o que é uma exorbitância.

Então, na verdade, estamos vivendo uma situação de anormalidade, de instabilidade política crônica, que começou logo depois da reeleição da Dilma.

E Bolsonaro já cometeu muito crime. O hall de crimes comuns e de responsabilidade que o Bolsonaro já cometeu ultrapassa muito tudo o que pesou contra o Collor e contra a Dilma para os impeachments deles. Então tem mais do que base jurídica para fazer e mais do que razão política para fazer, porque ele está conspirando, trabalhando contra a democracia de dentro. Como o (primeiro-ministro) Viktor Orbán faz na Hungria.

E as instituições ainda não estão respondendo com a força suficiente ou proporcional ao grau de risco que o Bolsonaro representa à democracia brasileira. Tanto o Congresso quanto o Judiciário têm sido muito condescendentes.

BBC News Brasil - Algum exemplo recente dessa reação insuficiente te ocorre?

Abranches - A resposta à ida de Bolsonaro para a porta do Quartel General do Exército em Brasília (em 19 de abril), onde fez um discurso diante de um grupo que pedia o fechamento do Congresso e do STF, que pedia um ato de excepcionalidade que interrompesse a vigência da Constituição, e que pedia a intervenção militar com Bolsonaro no poder. Isso é um crime. Fazer a pregação contra a democracia e defender o fechar das instituições, é crime — do ponto de vista do presidente, um crime de responsabilidade.

Isso foi grave demais — na minha avaliação, foi o grande divisor de águas.

Qual foi a resposta do Congresso e do Judiciário? Notas. Notas escritas em termos moderados, como se fosse apenas um pequeno deslize. Não foi um pequeno deslize. Foi um gravíssimo ato de ataque às instituições democráticas. Esse caso é emblemático da desproporção entre os absurdos que o Bolsonaro comete e as respostas com luvas de pelica que o Congresso e o Supremo dão.
Essas instituições não são grêmios estudantis, não são sindicatos, não são uma entidade da sociedade civil — são poderes de República, e como tais, a resposta tem que ser institucional, usando seus poderes, e não uma nota de repúdio.

BBC News Brasil - Mas tem ações (mirando o comportamento de Bolsonaro) em curso, tanto no STF quanto no Congresso.

Abranches - Agora, no STF, pela primeira vez tem uma ação séria em curso, conduzida pelo decano Celso de Mello. No Congresso, tem vários pedidos de impeachment, como sempre teve, contra o Fernando Henrique, contra o Lula, contra Dilma, contra o Temer...

A questão é que só contra o Collor e a Dilma, o presidente da Câmara, por razões diferentes — e no caso do Eduardo Cunha (ex-presidente da Casa), por razões espúrias — aceitou o pedido de impeachment.
O que Rodrigo Maia está fazendo é o que os presidentes da Câmara fizeram desde os governo Fernando Henrique e Lula, que foram governos democráticos e normais, onde não tinha cabimento impeachment como tem cabimento o impeachment do Bolsonaro.

Mas o Rodrigo Maia está agindo com um grau de condescendência, em nome de uma tranquilidade que não existe — deixando de encaminhar, permitir, que a Câmara use seus poderes.

BBC News Brasil - Essa condescendência tem talvez a ver com interesses políticos dele?

Abranches - Não sei. Essa coisa de atribuir razões a comportamentos de atores políticos individuais, esse dilema da atribuição, é uma coisa muito complicada. "Ah, porque ele está ligado ao Centrão". Não, não acho isso. "Ele tem uma índole não conflituosa, gosta de compromisso". Também não sei, nunca fiz análise de personalidade do Rodrigo Maia.

BBC News Brasil - Mas tem vários ministros do DEM (partido de Maia) no governo.

Abranches - É, mas sempre com o proviso de que o DEM não está no governo, que as nomeações não passaram pela liderança e etc. Essa questão da atribuição é muito complicada. Eu imagino que uma das razões — e isso o Rodrigo Maia sabe fazer muito bem, como poucos — é sua avaliação da temperatura do plenário. Talvez ele ache que a temperatura do plenário ainda não chegou no ponto em que é seguro para ele acatar um processo de impeachment, para não parecer que foi uma tentativa pessoal que fracassou. Mas realmente, com toda a sinceridade, não sei por que (Maia está optando pela "condescendência").

BBC News Brasil - E o Alcolumbre (Davi Alcolumbre, presidente do Senado, também do DEM)?

Abranches - O padrão de comportamento dele é mais claro: ele é muito mais governista do que não-governista. Ele não tem o mesmo grau de resposta que o Rodrigo Maia tem levando em consideração quem o elegeu no Senado. O Rodrigo Maia sabe que a coalizão que o elegeu na Câmara dos Deputados tem um componente grande da oposição, inclusive da esquerda. Então, ele evidentemente tem que tomar decisões tentando conciliar o grupo governista com a coalizão que é "rodriguista", quem o apoiou para a eleição.

Já para Alcolumbre pesa menos a coalizão que o elegeu, até porque sua eleição foi incidental, fortuita — não é o caso do Rodrigo. E ele (Alcolumbre) tem menos legitimidade, menos capacidade de controle do plenário, então o caso dele é diferente — ficar mais com os governistas é conveniente para ele.

BBC News - Por que o senhor falou anteriormente em uma "ação finalmente séria" do STF?

Abranches - Séria porque o ministro Celso de Mello tomou todas as iniciativas necessárias para viabilizar um inquérito e um processo contra os crimes de responsabilidade e comuns que Bolsonaro cometeu ao fazer pressão sobre o Moro para trocar o superintendente do Rio de Janeiro da Polícia Federal. Ele (Mello), do ponto de vista do STF, fez tudo que estava no alcance dele, do poder dele legítimo e constitucional. Tem instruído o processo com celeridade e seriedade. Está conduzindo o processo como deveria, de acordo com o figurino — como dizem os americanos, by the book.

O problema é que tem uma peça do Judiciário que está claudicante: o procurador-geral da República.
Não há garantia nenhuma. O grau de confiabilidade do (Augusto) Aras é baixo. Portanto, ele tem que provar que é capaz de tomar uma posição isenta, e não favorável ao Bolsonaro, independentemente do indicativo de crime. Se ele arquivar, se recusar a apresentar uma denúncia; ou apresentar uma denúncia contra o Moro, vai estar fraudando o papel do MPF e vai estar dando uma manifestação muito clara de que o MPF se politizou, que a PGR se politizou.

Arquivando o processo, não há nada que o Supremo possa fazer a respeito. Imagino que haja procedimentos de análise do comportamento do procurador-geral. Não sou advogado, não entendo perfeitamente como funcionaria, mas acho que há procedimentos, digamos, disciplinares, que podem ser aplicados no caso de ser muito flagrante a decisão dele favorável ao Bolsonaro. Mas isso é futuro, estamos especulando.

BBC News Brasil - No caso do QG do Exército, não foi a primeira vez que Bolsonaro verbalizou contra as instituições democráticas. O que foi diferente naquele episódio?

Abranches - Toda a carga simbólica. Nas outras manifestações (de apoiadores de Bolsonaro), havia outras demandas de fato. Eram ensaios da mesma coisa, mas de fato havia outras demandas: a favor do Moro, da luta contra a corrupção, e alguns grupos isolados pedindo fechamento do Congresso e do Supremo, "fora Maia" e etc.

Na do QG do Exército, não. Era uma manifestação exclusivamente antidemocrática. Só havia cartazes, faixas e palavras de ordem contra a democracia. Muito próximo dele para ele não ler. O que ele alegou, de que naquele dia tinha outras demandas (além do pedido por intervenção militar), não é verdade.

E na porta do QG do Exército, evidentemente um recado importante.

"Ah, mas era o Dia do Exército". Não importa. O que importa é que eles foram para a porta do Exército pedir intervenção militar contra a democracia, fechamento do STF, do Congresso Nacional, e um ato institucional que interrompesse a vigência da Constituição de 1989. Crime, tudo crime. Qual teria sido a atitude correta do governo? Mandar a polícia dissolver a manifestação com gás lacrimogêneo, como faz com as outras.

É um divisor de águas, tem uma carga simbólica muito forte, e é uma manifestação explícita demais para se desconsiderar. Houve uma manifestação forte, apoiada pelo presidente, contra a democracia, e uma resposta fraca dos outros poderes, que têm a obrigação de defender a democracia.

BBC News Brasil - Hoje, a rejeição do Bolsonaro está na casa dos 40%, ainda não majoritária, como você aponta como uma das características importantes para o impeachment.

Abranches - Está chegando lá. Na verdade, tem de três a quatro pesquisas rolando, em algumas já passou de 50%. Tem obviamente questões metodológicas, de amostra, questões técnicas muito complicadas hoje (com a pandemia de coronavírus e restrições para se fazer pesquisas presenciais).
Com as atitudes que ele tem tomado em relação à pandemia; com as atitudes agressivas contra a imprensa, contra a democracia; e com a economia do jeito que está, eu acho muito pouco provável que ele mantenha a popularidade em um nível de segurança.

Do ponto de vista da base de apoio popular para um processo de impeachment, ele está próximo disso, se é que já não está lá. O que está fazendo a diferença? É que nós estamos vivendo uma situação tão anormal (com a pandemia de coronavírus).

O parlamentar leva em consideração a pesquisa de opinião. Mas não é a pesquisa que o informa de forma principal sobre o apoio do presidente. O que o informa sobre o apoio ao presidente é quando ele volta para suas bases eleitorais e ouve o murmurar do povo, escuta os seus cabos eleitorais. Essa é a verdadeira pesquisa de opinião, e essa não está podendo ser feita, porque os políticos estão sem contato pessoal com seus eleitores.

O parlamentar volta para a casa dele (fora de Brasília), aí começa a romaria. Vão chegando as visitas, os cabos eleitorais, as demandas... Ele vai ouvindo — ele é um profissional disso — e vai tirando suas conclusões. Quando ele volta para Brasília, ele sabe com quem deve ficar: com seus eleitores ou com o governo. Se o governo está forte, ele volta para Brasília governista; se o governo está fraco, ele volta como oposição.

Mas isso não está acontecendo hoje da mesma maneira, porque é difícil para o político transitar do olho-no-olho dos cabos eleitorais e dos eleitores para o telefone ou WhatsApp. Talvez a temperatura demore um pouco mais a ser percebida.

E tem o fato de que uma parte desses parlamentares é sobrevivente de um enorme susto, porque muitos políticos tradicionais não foram reeleitos. Esses que estão lá estão fazendo outro cálculo: será que meu eleitor vai ficar fiel a mim? Porque se ele não vai me eleger, melhor eu me aproveitar, tirar o quanto puder do governo, e depois vou fazer outra coisa, mas pelo menos eu vou calçado.

Essa situação anômala pode produzir um certo inchaço na base de apoio ao Bolsonaro no Congresso. Mas ele tem condições mínimas para formar uma coalizão de sustentação forte. Será sempre uma base fraca, errática e volúvel, e cara, muito cara.

Ele vai ter que dar muito orçamento, e isso vai criar um problema para ele com a equipe econômica. Essa tentativa de formar uma base depois de se recusar a formar uma coalizão quando tinha força e recursos para isso — logo depois da eleição — não é uma situação confortável nem para os parlamentares, nem para o Bolsonaro.

BBC News Brasil - Essa aproximação do Centrão pode reverter um quadro que está caminhando para o impeachment?

Abranches - Não sei se o quadro está se encaminhando para o impeachment, eu acho que o quadro já bateu várias vezes na porta do impeachment e voltou. Bolsonaro já deu sobejas razões para o impeachment, mas o fato de não ter corrido nenhum processo mostra que está longe de acontecer.
A aproximação deste tipo de Centrão é a turma dele. Ele sabe fazer esse jogo, o que esses caras gostam, o que eles querem.

Mas essa turma tem um tipo de demanda que é incompatível com o quadro atual — de austeridade imposto pela pandemia. Outro fator que dificulta o sucesso dessa empreitada é o problema com a equipe econômica, que odeia gasto público.

Por outro lado, é uma pequena política, não uma política que gere resultados macro. Não é uma política que permita construir projetos políticos. Não é uma coalizão, é um conluio — na verdade, o objetivo ali é proteger Bolsonaro do processo de impeachment.

Quando ele busca essa aliança, esse conluio, com a parte mais podre do Centrão — parlamentares já condenados, outros em vias de sê-lo —, não terá nenhum resultado macropolítico importante para o país. Ele não vai conseguir tomar qualquer decisão relevante com essa chamada base.

O governo está paralisado.

No começo do governo, ele tinha dois pilares: a econômica, com Paulo Guedes (ministro da Economia); e da Lava-Jato, da luta contra a corrupção, com o Moro. Uma delas acabou (com a saída de Moro). A outra (econômica), balança mas não cai, pela quantidade de vezes que Bolsonaro sabota os projetos do Paulo Guedes.

O governo não tem projeto: os que são apresentados não andam; as medidas provisórias são rejeitadas. O pouco que consegue aprovar é porque o Congresso assume com dele a tarefa — faz alterações e aprova um outro projeto.

O modelo continua sendo o presidencialismo de coalizão. Se o presidente não tiver a maioria multipartidária sólida, consistente, no Congresso, ele não governa.

BBC News Brasil - Este governo trouxe a novidade de uma maior aposta nas bancadas temáticas, e não partidárias.

Abranches - Isso aí estava fadado a dar errado desde o princípio.

BBC News Brasil - Mas elas explicam estas pautas circunstanciais que avançaram no Congresso, certo?
Abranches - Só pauta que interessa a essas bancadas temáticas (avança).
Por exemplo, os ruralistas. Eles se dividem na maior parte das pautas que não sejam ruralistas.
A bancada da bala só consegue aprovar suas pautas, se divide em outras questões; como a bancada da Bíblia. Você não consegue montar uma coalizão consistente, coerente, com as bancadas temáticas. Por isso ele (Bolsonaro) fracassou.

BBC News Brasil - Considerando seus estudos sobre os outros impeachments e o que está dizendo agora, daria para prever que um impeachment de Bolsonaro é hoje improvável?

Abranches - É difícil dizer, viu. Neste momento, o Rodrigo Maia já deu todas as demonstrações de que não está disposto a abrir um processo de impeachment, portanto ele (o processo) não está caminhando.
O processo pelo Supremo vai depender muito do Aras. Aí teríamos um primeiro teste. Nesse caso, é mais previsível — se o Aras denunciar, a possibilidade do Bolsonaro evitar uma autorização (do processo de impeachment) é baixa.

BBC News Brasil - O federalismo é um tema com o qual você trabalha bastante, destacando que no Brasil o governo federal centraliza muito do poder orçamentário e de gestão. Com o slogan "Mais Brasil, menos Brasília" durante sua campanha, Bolsonaro também parecia ter uma crítica nesse sentido...

Abranches - Era mentira do Bolsonaro, ele nunca acreditou nisso. O Paulo Guedes é que acreditava, não acredita mais, porque na verdade fazer "Mais Brasil, menos Brasília" significa abrir mão de poder. Esse não é o projeto de Bolsonaro, ele quer mais poder.

BBC News Brasil - A atual pandemia inclusive exacerbou isto, com Bolsonaro fazendo acusações frequentes contra governadores e o STF tendo que se posicionar sobre as responsabilidades dos entes (o Supremo decidiu em abril que prefeitos e governadores têm autonomia para decidir suas políticas de isolamento social).

Abranches - Exatamente. Os governadores têm alguma autonomia mas não têm os recursos. Para a maior parte dos Estados e municípios, o que conta mesmo (para seu caixa) são as transferências do Fundo de Participação de Estados e Municípios. E quando você olha, tudo depende de autorização de Brasília, da orientação de Brasília, tem muita uniformidade na educação, na saúde, que não devia ter...
Qualquer governador, qualquer prefeito, sabe melhor do que sua população precisa do que qualquer tecnocrata de Brasília. Todas as federações que eu conheço são descentralizadas e têm autonomia — todas elas funcionam melhor que a brasileira. Tanto as pequenas, como o Canadá, quando as grandes, como Estados Unidos.

BBC News Brasil - Voltando a algo que você já até mencionou no início da conversa, sobre a instabilidade na democracia a partir de 2014, que muita gente atribui ao questionamento pelo PSDB do resultado das eleições presidenciais (após derrota para a candidata do PT, Dilma Rousseff, o partido pediu ao Tribunal Superior Eleitoral naquele ano uma auditoria do processo para verificar sua lisura).

Abranches - Acho que foi um erro de comportamento sério do Aécio Neves contestar o resultado, porque era uma coisa incomum — as eleições vinham sendo consideradas razoáveis o tempo todo.
Não acho que seja o início da instabilidade, porque ela estava dada pela incapacidade de lidar com a coalizão da Dilma; e pelo declínio da economia.

Tem outro aspecto importante, observado também com Bolsonaro, que é frustrar o eleitor. Dilma se reelegeu prometendo crescimento econômico, e isso não aconteceu; ela soltou os preços da gasolina que tinha comprimido de forma artificial por razões puramente políticas, e produziu inflação.

Ou seja, exatamente o oposto do que ela prometeu ao eleitor — o eleitor não petista, pois o eleitor petista é mais fiel. Mas nenhum presidente petista se elegeu só com o voto do PT, e sim por uma coalizão eleitoral muito maior, reunido gente que tinha votado no Fernando Henrique.

Na verdade, uma parte dos que elegeram Fernando Henrique elegeu Lula, Dilma e elegeu Bolsonaro — é uma parte importante das eleições esse voto cambiante que tem no Brasil.

O Fernando Henrique também frustrou o eleitorado prometendo a estabilidade da moeda, teve a desvalorização e a inflação subiu. Ele perdeu popularidade para sempre — por causa da frustração. Não teve impeachment, mas ele perdeu a eleição, não fazendo sucessor.

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