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BBC NEWS
'Nem Fernando Collor nem Dilma
Rousseff investiram contra a democracia', diz Abranches sobre presidentes que
sofreram impeachments, em contraste com Bolsonaro, que trabalha 'contra a
democracia de dentro'.
O cientista
político Sérgio Abranches vem defendendo nos últimos anos que o impeachment é
um "processo traumático" e uma "ruptura política grave" na
jovem democracia do país, e também sintoma das disfunções do nosso modelo
político — um presidencialismo multipartidário fragmentado, que exige do
Planalto uma grande esforço para cultivar uma coalizão no Congresso; e um
federalismo com forte concentração de poder pelo governo federal.
Como destaca em seu
livro Presidencialismo de coalizão - Raízes e evolução do modelo
político brasileiro (Companhia das Letras, 2018), dois impeachments em
30 anos colocam em dúvida "se é possível falar num regime institucional
totalmente funcional". Ainda assim, diante
de dezenas de pedidos de impeachment que já se acumulam na Câmara contra um
novo alvo sentado na cadeira da Presidência, Abranches diz à BBC News Brasil
que um processo para retirar Jair Bolsonaro é
necessário, pois seu governo é, ele próprio, "uma ruptura indesejável para
a democracia brasileira".
"É isso que
faz toda a diferença: nem Fernando Collor nem Dilma Rousseff investiram contra
a democracia. Na verdade, eles respeitaram muito a regra do jogo", afirmou
em entrevista por telefone no último dia 11, referindo-se aos ex-presidentes brasileiros
que foram vítimas de impeachments.
Já as respostas com
"luvas de pelica" do Congresso e do Judiciário às atitudes de
Bolsonaro mostram que o risco para a democracia é ainda maior, pois as próprias
instituições que devem garantir seus princípios não estão usando seus poderes
para isso, critica Abranches — se bastando com notas de repúdio como se fossem
"grêmios estudantis" ou uma "entidade da sociedade civil"
qualquer.
Ainda que defenda a
saída de Bolsonaro, o cientista político é cauteloso ao avaliar a probabilidade
de que o impeachment ocorra — sobretudo pelos sinais que o presidente da
Câmara, Rodrigo Maia, vem dando. No entanto, ele reconhece que alguns dos
principais ingredientes necessários para a "receita" do impeachment
já rondam Bolsonaro, sobretudo a baixa popularidade e uma base fraca no
Congresso.
Após a entrevista
por telefone da BBC News Brasil com o cientista político, houve um novo
capítulo na relação entre Maia e Bolsonaro. Na quinta-feira 14, após Bolsonaro
reclamar de Maia em reunião com empresários, por sua condução de medidas
provisórias na Câmara, os dois tiveram uma reunião. Depois dela, o presidente
da Câmara afirmou a jornalistas que defendeu ao presidente buscar os
"pontos que unem": "o importante é que todos possam voltar a
sentar à mesa e discutir os caminhos".
No Judiciário,
Abranches reconhece como a primeira "ação séria" contra o
comportamento de Bolsonaro o inquérito em curso, relatado pelo ministro do STF
Celso de Mello, para apurar a possibilidade de interferência inapropriada do
presidente na Polícia Federal. O inquérito foi motivado por acusações do
ex-ministro da Justiça Sergio Moro.
Na entrevista, o
cientista político também falou da aproximação entre Bolsonaro e parlamentares
do Centrão; e das disputas no federalismo brasileiro expostas pela pandemia de
coronavírus.
Confira os
principais trechos da entrevista.
BBC News Brasil - O senhor costuma se
referir ao impeachment como um processo traumático, sinal de uma democracia
ainda instável. No mandato atual, partidos até mesmo de oposição, como o PT,
hesitaram em assumir um clamor pelo impeachment de Bolsonaro com argumentos
parecidos. Um eventual impeachment dele seria uma ruptura indesejável para a
democracia brasileira?
Sérgio Abranches - Não, porque o governo Bolsonaro é uma ruptura
indesejável pra democracia brasileira. Isso é o que faz toda a diferença. Nem
Fernando Collor nem Dilma Rousseff investiram contra a democracia. Na verdade,
eles respeitaram muito a regra do jogo. Recentemente, eu
estava escrevendo um artigo sobre a importância dos politólogos passarem a
analisar a questão do meio ambiente, e eu falava da importância que o Brasil já
teve nesses fóruns multilaterais, que está perdendo completamente porque o
governo Bolsonaro está destruindo a diplomacia brasileira e as políticas de
proteção à biodiversidade e de combate à mudança climática.
Eu lembrei que
Collor, em um dos momentos mais dramáticos do escândalo que levou ao
impeachment dele — as acusações de seu irmão —, estava presidindo as reuniões
de chefes de Estado durante a Rio-92. E ele a presidiu com a maior
tranquilidade. Ele deixou todo o processo correr sem nenhuma tentativa de
interferir na liberdade das instituições que investigavam, e nem na liberdade
de imprensa, apesar de evidentemente estar indignado com as coisas que saíam.
No caso da Dilma,
ela não tentou interferir de forma alguma, e durante os governos do PT, não
houve nenhuma tentativa de ingerência do governo federal no Ministério Público
Federal (MPF).
Agora, estamos
vendo exatamente o contrário. O presidente ofende a imprensa, tenta interferir
na autonomia da Polícia Federal. Já interferiu na autonomia do MPF com a
nomeação de um candidato fora da lista (tríplice, com indicação de nomes pelos
próprios procuradores, como era de praxe nas outras gestões), e que tem
despachado com o presidente no Palácio do Planalto, o que é uma exorbitância.
Então, na verdade,
estamos vivendo uma situação de anormalidade, de instabilidade política
crônica, que começou logo depois da reeleição da Dilma.
E Bolsonaro já
cometeu muito crime. O hall de crimes comuns e de
responsabilidade que o Bolsonaro já cometeu ultrapassa muito tudo o que pesou
contra o Collor e contra a Dilma para os impeachments deles. Então tem mais do
que base jurídica para fazer e mais do que razão política para fazer, porque ele
está conspirando, trabalhando contra a democracia de dentro. Como o
(primeiro-ministro) Viktor Orbán faz na Hungria.
E as instituições
ainda não estão respondendo com a força suficiente ou proporcional ao grau de
risco que o Bolsonaro representa à democracia brasileira. Tanto o Congresso
quanto o Judiciário têm sido muito condescendentes.
BBC News Brasil - Algum exemplo
recente dessa reação insuficiente te ocorre?
Abranches - A resposta à ida de Bolsonaro para a porta do
Quartel General do Exército em Brasília (em 19 de abril), onde
fez um discurso diante de um grupo que pedia o fechamento do Congresso e do
STF, que pedia um ato de excepcionalidade que interrompesse a vigência da
Constituição, e que pedia a intervenção militar com Bolsonaro no poder. Isso é
um crime. Fazer a pregação contra a democracia e defender o fechar das
instituições, é crime — do ponto de vista do presidente, um crime de
responsabilidade.
Isso foi grave
demais — na minha avaliação, foi o grande divisor de águas.
Qual foi a resposta
do Congresso e do Judiciário? Notas. Notas escritas em termos moderados, como
se fosse apenas um pequeno deslize. Não foi um pequeno deslize. Foi um
gravíssimo ato de ataque às instituições democráticas. Esse caso é emblemático
da desproporção entre os absurdos que o Bolsonaro comete e as respostas com
luvas de pelica que o Congresso e o Supremo dão.
Essas instituições
não são grêmios estudantis, não são sindicatos, não são uma entidade da
sociedade civil — são poderes de República, e como tais, a resposta tem que ser
institucional, usando seus poderes, e não uma nota de repúdio.
BBC News Brasil - Mas tem ações
(mirando o comportamento de Bolsonaro) em curso, tanto no STF quanto no
Congresso.
Abranches - Agora, no STF, pela primeira vez tem uma ação séria
em curso, conduzida pelo decano Celso de Mello. No Congresso, tem vários
pedidos de impeachment, como sempre teve, contra o Fernando Henrique, contra o
Lula, contra Dilma, contra o Temer...
A questão é que só
contra o Collor e a Dilma, o presidente da Câmara, por razões diferentes — e no
caso do Eduardo Cunha (ex-presidente da Casa), por razões espúrias — aceitou o
pedido de impeachment.
O que Rodrigo Maia
está fazendo é o que os presidentes da Câmara fizeram desde os governo Fernando
Henrique e Lula, que foram governos democráticos e normais, onde não tinha
cabimento impeachment como tem cabimento o impeachment do Bolsonaro.
Mas o Rodrigo Maia
está agindo com um grau de condescendência, em nome de uma tranquilidade que
não existe — deixando de encaminhar, permitir, que a Câmara use seus poderes.
BBC News Brasil - Essa
condescendência tem talvez a ver com interesses políticos dele?
Abranches - Não sei. Essa coisa de atribuir razões a
comportamentos de atores políticos individuais, esse dilema da atribuição, é
uma coisa muito complicada. "Ah, porque
ele está ligado ao Centrão". Não, não acho isso. "Ele tem uma
índole não conflituosa, gosta de compromisso". Também não sei, nunca fiz
análise de personalidade do Rodrigo Maia.
BBC News Brasil - Mas tem vários
ministros do DEM (partido de Maia) no governo.
Abranches - É, mas sempre com o proviso de que o DEM não está
no governo, que as nomeações não passaram pela liderança e etc. Essa questão da
atribuição é muito complicada. Eu imagino que uma
das razões — e isso o Rodrigo Maia sabe fazer muito bem, como poucos — é sua
avaliação da temperatura do plenário. Talvez ele ache que a temperatura do
plenário ainda não chegou no ponto em que é seguro para ele acatar um processo
de impeachment, para não parecer que foi uma tentativa pessoal que fracassou. Mas realmente, com
toda a sinceridade, não sei por que (Maia está optando pela
"condescendência").
BBC News Brasil - E o Alcolumbre
(Davi Alcolumbre, presidente do Senado, também do DEM)?
Abranches - O padrão de comportamento dele é mais claro: ele é
muito mais governista do que não-governista. Ele não tem o mesmo grau de
resposta que o Rodrigo Maia tem levando em consideração quem o elegeu no
Senado. O Rodrigo Maia sabe que a coalizão que o elegeu na Câmara dos Deputados
tem um componente grande da oposição, inclusive da esquerda. Então, ele
evidentemente tem que tomar decisões tentando conciliar o grupo governista com
a coalizão que é "rodriguista", quem o apoiou para a eleição.
Já para Alcolumbre
pesa menos a coalizão que o elegeu, até porque sua eleição foi incidental,
fortuita — não é o caso do Rodrigo. E ele (Alcolumbre) tem menos legitimidade,
menos capacidade de controle do plenário, então o caso dele é diferente — ficar
mais com os governistas é conveniente para ele.
BBC News - Por que o senhor falou
anteriormente em uma "ação finalmente séria" do STF?
Abranches - Séria porque o ministro Celso de Mello tomou todas
as iniciativas necessárias para viabilizar um inquérito e um processo contra os
crimes de responsabilidade e comuns que Bolsonaro cometeu ao fazer pressão
sobre o Moro para trocar o superintendente do Rio de Janeiro da Polícia
Federal. Ele (Mello), do
ponto de vista do STF, fez tudo que estava no alcance dele, do poder dele
legítimo e constitucional. Tem instruído o processo com celeridade e seriedade.
Está conduzindo o processo como deveria, de acordo com o figurino — como dizem
os americanos, by the book.
O problema é que
tem uma peça do Judiciário que está claudicante: o procurador-geral da
República.
Não há garantia
nenhuma. O grau de confiabilidade do (Augusto) Aras é baixo. Portanto, ele tem
que provar que é capaz de tomar uma posição isenta, e não favorável ao
Bolsonaro, independentemente do indicativo de crime. Se ele arquivar, se
recusar a apresentar uma denúncia; ou apresentar uma denúncia contra o Moro,
vai estar fraudando o papel do MPF e vai estar dando uma manifestação muito
clara de que o MPF se politizou, que a PGR se politizou.
Arquivando o
processo, não há nada que o Supremo possa fazer a respeito. Imagino que haja
procedimentos de análise do comportamento do procurador-geral. Não sou
advogado, não entendo perfeitamente como funcionaria, mas acho que há
procedimentos, digamos, disciplinares, que podem ser aplicados no caso de ser
muito flagrante a decisão dele favorável ao Bolsonaro. Mas isso é futuro,
estamos especulando.
BBC News Brasil - No caso do QG do
Exército, não foi a primeira vez que Bolsonaro verbalizou contra as
instituições democráticas. O que foi diferente naquele episódio?
Abranches - Toda a carga simbólica. Nas outras
manifestações (de apoiadores de Bolsonaro), havia outras demandas de fato. Eram
ensaios da mesma coisa, mas de fato havia outras demandas: a favor do Moro, da
luta contra a corrupção, e alguns grupos isolados pedindo fechamento do
Congresso e do Supremo, "fora Maia" e etc.
Na do QG do
Exército, não. Era uma manifestação exclusivamente antidemocrática. Só havia
cartazes, faixas e palavras de ordem contra a democracia. Muito próximo dele
para ele não ler. O que ele alegou,
de que naquele dia tinha outras demandas (além do pedido por intervenção
militar), não é verdade.
E na porta do QG do
Exército, evidentemente um recado importante.
"Ah, mas era o
Dia do Exército". Não importa. O que importa é que eles foram para a porta
do Exército pedir intervenção militar contra a democracia, fechamento do STF,
do Congresso Nacional, e um ato institucional que interrompesse a vigência da
Constituição de 1989. Crime, tudo crime. Qual teria sido a
atitude correta do governo? Mandar a polícia dissolver a manifestação com gás
lacrimogêneo, como faz com as outras.
É um divisor de
águas, tem uma carga simbólica muito forte, e é uma manifestação explícita
demais para se desconsiderar. Houve uma
manifestação forte, apoiada pelo presidente, contra a democracia, e uma
resposta fraca dos outros poderes, que têm a obrigação de defender a
democracia.
BBC News Brasil - Hoje, a rejeição do
Bolsonaro está na casa dos 40%, ainda não majoritária, como você aponta como
uma das características importantes para o impeachment.
Abranches - Está chegando lá. Na verdade, tem de três a quatro
pesquisas rolando, em algumas já passou de 50%. Tem obviamente questões
metodológicas, de amostra, questões técnicas muito complicadas hoje (com a
pandemia de coronavírus e restrições para se fazer pesquisas presenciais).
Com as atitudes que
ele tem tomado em relação à pandemia; com as atitudes agressivas contra a
imprensa, contra a democracia; e com a economia do jeito que está, eu acho
muito pouco provável que ele mantenha a popularidade em um nível de segurança.
Do ponto de vista
da base de apoio popular para um processo de impeachment, ele está próximo
disso, se é que já não está lá. O que está fazendo
a diferença? É que nós estamos vivendo uma situação tão anormal (com a pandemia
de coronavírus).
O parlamentar leva
em consideração a pesquisa de opinião. Mas não é a pesquisa que o informa de
forma principal sobre o apoio do presidente. O que o informa
sobre o apoio ao presidente é quando ele volta para suas bases eleitorais e
ouve o murmurar do povo, escuta os seus cabos eleitorais. Essa é a verdadeira
pesquisa de opinião, e essa não está podendo ser feita, porque os políticos
estão sem contato pessoal com seus eleitores.
O parlamentar volta
para a casa dele (fora de Brasília), aí começa a romaria. Vão chegando as
visitas, os cabos eleitorais, as demandas... Ele vai ouvindo — ele é um
profissional disso — e vai tirando suas conclusões. Quando ele volta para
Brasília, ele sabe com quem deve ficar: com seus eleitores ou com o governo. Se o governo está
forte, ele volta para Brasília governista; se o governo está fraco, ele volta
como oposição.
Mas isso não está
acontecendo hoje da mesma maneira, porque é difícil para o político transitar
do olho-no-olho dos cabos eleitorais e dos eleitores para o telefone ou
WhatsApp. Talvez a temperatura demore um pouco mais a ser percebida.
E tem o fato de que
uma parte desses parlamentares é sobrevivente de um enorme susto, porque muitos
políticos tradicionais não foram reeleitos. Esses que estão lá estão fazendo
outro cálculo: será que meu eleitor vai ficar fiel a mim? Porque se ele não vai
me eleger, melhor eu me aproveitar, tirar o quanto puder do governo, e depois
vou fazer outra coisa, mas pelo menos eu vou calçado.
Essa situação
anômala pode produzir um certo inchaço na base de apoio ao Bolsonaro no
Congresso. Mas ele tem condições mínimas para formar uma coalizão de
sustentação forte. Será sempre uma base fraca, errática e volúvel, e cara,
muito cara.
Ele vai ter que dar
muito orçamento, e isso vai criar um problema para ele com a equipe econômica.
Essa tentativa de formar uma base depois de se recusar a formar uma coalizão
quando tinha força e recursos para isso — logo depois da eleição — não é uma
situação confortável nem para os parlamentares, nem para o Bolsonaro.
BBC News Brasil - Essa aproximação do
Centrão pode reverter um quadro que está caminhando para o impeachment?
Abranches - Não sei se o quadro está se encaminhando para o
impeachment, eu acho que o quadro já bateu várias vezes na porta do impeachment
e voltou. Bolsonaro já deu
sobejas razões para o impeachment, mas o fato de não ter corrido nenhum
processo mostra que está longe de acontecer.
A aproximação deste
tipo de Centrão é a turma dele. Ele sabe fazer esse jogo, o que esses caras
gostam, o que eles querem.
Mas essa turma tem
um tipo de demanda que é incompatível com o quadro atual — de austeridade
imposto pela pandemia. Outro fator que dificulta o sucesso dessa empreitada é o
problema com a equipe econômica, que odeia gasto público.
Por outro lado, é
uma pequena política, não uma política que gere resultados macro. Não é uma
política que permita construir projetos políticos. Não é uma coalizão, é um
conluio — na verdade, o objetivo ali é proteger Bolsonaro do processo de
impeachment.
Quando ele busca
essa aliança, esse conluio, com a parte mais podre do Centrão — parlamentares
já condenados, outros em vias de sê-lo —, não terá nenhum resultado
macropolítico importante para o país. Ele não vai conseguir tomar qualquer
decisão relevante com essa chamada base.
O governo está
paralisado.
No começo do
governo, ele tinha dois pilares: a econômica, com Paulo Guedes (ministro da
Economia); e da Lava-Jato, da luta contra a corrupção, com o Moro. Uma delas
acabou (com a saída de Moro). A outra (econômica), balança mas não cai, pela
quantidade de vezes que Bolsonaro sabota os projetos do Paulo Guedes.
O governo não tem
projeto: os que são apresentados não andam; as medidas provisórias são
rejeitadas. O pouco que consegue aprovar é porque o Congresso assume com dele a
tarefa — faz alterações e aprova um outro projeto.
O modelo continua
sendo o presidencialismo de coalizão. Se o presidente não tiver a maioria
multipartidária sólida, consistente, no Congresso, ele não governa.
BBC News Brasil - Este governo trouxe
a novidade de uma maior aposta nas bancadas temáticas, e não partidárias.
Abranches - Isso aí estava fadado a dar errado desde o
princípio.
BBC News Brasil - Mas elas explicam
estas pautas circunstanciais que avançaram no Congresso, certo?
Abranches - Só pauta que interessa a essas bancadas
temáticas (avança).
Por exemplo, os
ruralistas. Eles se dividem na maior parte das pautas que não sejam ruralistas.
A bancada da bala
só consegue aprovar suas pautas, se divide em outras questões; como a bancada
da Bíblia. Você não consegue
montar uma coalizão consistente, coerente, com as bancadas temáticas. Por isso
ele (Bolsonaro) fracassou.
BBC News Brasil - Considerando seus
estudos sobre os outros impeachments e o que está dizendo agora, daria para
prever que um impeachment de Bolsonaro é hoje improvável?
Abranches - É difícil dizer, viu. Neste momento, o
Rodrigo Maia já deu todas as demonstrações de que não está disposto a abrir um
processo de impeachment, portanto ele (o processo) não está caminhando.
O processo pelo
Supremo vai depender muito do Aras. Aí teríamos um primeiro teste. Nesse caso,
é mais previsível — se o Aras denunciar, a possibilidade do Bolsonaro evitar
uma autorização (do processo de impeachment) é baixa.
BBC News Brasil - O federalismo é um
tema com o qual você trabalha bastante, destacando que no Brasil o governo
federal centraliza muito do poder orçamentário e de gestão. Com o slogan
"Mais Brasil, menos Brasília" durante sua campanha, Bolsonaro também
parecia ter uma crítica nesse sentido...
Abranches - Era mentira do Bolsonaro, ele nunca acreditou
nisso. O Paulo Guedes é
que acreditava, não acredita mais, porque na verdade fazer "Mais Brasil,
menos Brasília" significa abrir mão de poder. Esse não é o projeto de
Bolsonaro, ele quer mais poder.
BBC News Brasil - A atual pandemia
inclusive exacerbou isto, com Bolsonaro fazendo acusações frequentes contra
governadores e o STF tendo que se posicionar sobre as responsabilidades dos
entes (o Supremo decidiu em abril que prefeitos e governadores têm autonomia
para decidir suas políticas de isolamento social).
Abranches - Exatamente. Os governadores têm
alguma autonomia mas não têm os recursos. Para a maior parte dos Estados e
municípios, o que conta mesmo (para seu caixa) são as transferências do Fundo
de Participação de Estados e Municípios. E quando você olha,
tudo depende de autorização de Brasília, da orientação de Brasília, tem muita
uniformidade na educação, na saúde, que não devia ter...
Qualquer
governador, qualquer prefeito, sabe melhor do que sua população precisa do que
qualquer tecnocrata de Brasília. Todas as federações
que eu conheço são descentralizadas e têm autonomia — todas elas funcionam
melhor que a brasileira. Tanto as pequenas, como o Canadá, quando as grandes,
como Estados Unidos.
BBC News Brasil - Voltando a algo que
você já até mencionou no início da conversa, sobre a instabilidade na
democracia a partir de 2014, que muita gente atribui ao questionamento pelo
PSDB do resultado das eleições presidenciais (após derrota para a candidata do
PT, Dilma Rousseff, o partido pediu ao Tribunal Superior Eleitoral naquele ano
uma auditoria do processo para verificar sua lisura).
Abranches - Acho que foi um erro de comportamento sério
do Aécio Neves contestar o resultado, porque era uma coisa incomum — as
eleições vinham sendo consideradas razoáveis o tempo todo.
Não acho que seja o
início da instabilidade, porque ela estava dada pela incapacidade de lidar com
a coalizão da Dilma; e pelo declínio da economia.
Tem outro aspecto
importante, observado também com Bolsonaro, que é frustrar o eleitor. Dilma se
reelegeu prometendo crescimento econômico, e isso não aconteceu; ela soltou os
preços da gasolina que tinha comprimido de forma artificial por razões
puramente políticas, e produziu inflação.
Ou seja, exatamente
o oposto do que ela prometeu ao eleitor — o eleitor não petista, pois o eleitor
petista é mais fiel. Mas nenhum presidente petista se elegeu só com o voto do
PT, e sim por uma coalizão eleitoral muito maior, reunido gente que tinha votado
no Fernando Henrique.
Na verdade, uma
parte dos que elegeram Fernando Henrique elegeu Lula, Dilma e elegeu Bolsonaro
— é uma parte importante das eleições esse voto cambiante que tem no Brasil.
O Fernando Henrique
também frustrou o eleitorado prometendo a estabilidade da moeda, teve a
desvalorização e a inflação subiu. Ele perdeu popularidade para sempre — por
causa da frustração. Não teve impeachment, mas ele perdeu a eleição, não
fazendo sucessor.
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