Veja.com - Roberta Paduan
© Marcelo Camargo/Agência Brasil O advogado
Miguel Reale Júnior durante o julgamento de impeachment da presidente Dilma
Rousseff no Senado - 30/08/2016.
O jurista Miguel Reale Júnior foi co-autor
dos dois pedidos de impeachment que resultaram na queda dos presidentes
Fernando Collor de Mello, em 1991, e Dilma Rousseff, em 2016. Atualmente, Reale
vem recebendo consultas “verbais e informais” de interessados em pedir um novo
impedimento, o de Jair Bolsonaro. “Não tenho a menor dúvida de que,
juridicamente, ele cometeu crime de responsabilidade e crime comum”, afirmou a
VEJA o jurista, de sua casa em Canela, no Rio Grande do Sul.
Segundo ele, no
entanto, essa medida não deve ser considerada nesse momento. Além de o processo
demorar muito, não se pode desperdiçar forças no combate à epidemia do coronavírus. “Bolsonaro usaria politicamente a ação, diria que
é vítima de um golpe, e colocaria suas tropas virtuais e reais na rua para
dizer que só queriam o cargo dele”.
A palavra
impeachment era praticamente proibida, principalmente entre parlamentares e
membros do Judiciário, mas começou a ser pronunciada nas últimas semanas,
diante do comportamento do presidente Jair Bolsonaro na crise do novo
coronavírus. Existem elementos para fundamentar um pedido de impedimento?
Não tenho a menor
dúvida de que juridicamente está caracterizada a afronta ao decoro, porque
decoro engloba conduta, uma forma de comportamento que respeite as leis, que
respeite o direito dos outros, que não deixe prevalecer os interesses pessoais
de vaidade ou políticos sobre o interesse geral; decoro envolve compostura,
ponderação. Há vários atos do presidente, ao longo do tempo, que ofenderam o
decoro, como os insultos a jornalistas.
Tudo isso configura quebra de decoro,
mas o comportamento que ele vem tendo ao longo do mês de março, em relação à
pandemia, é o mais grave de todos. O que ele fez nesse final de semana foi uma
loucura. Aliás, eu já disse que o caso do Bolsonaro não é um problema de
impeachment, mas de interdição (em que o Ministério Público pede que o
presidente se afaste e seja submetido a um exame de sanidade mental). É um
processo paranoico.
Mas quais são os
fundamentos jurídicos para um pedido de impeachment?
É preciso lembrar
que decoro é também a análise de um comportamento ao longo do tempo. Em
primeiro lugar, ele está infringindo todo um arcabouço jurídico criado para
conter a epidemia. Existe uma declaração da Organização Mundial da Saúde (OMS),
dizendo que o isolamento é a medida mais correta (para se tentar controla a
pandemia). Em função dessa declaração da OMS, feita em janeiro, o Congresso fez
rapidamente uma lei, a 13.979, que estabelece medidas a serem adotadas no país
na luta contra o vírus. Ela prevê, entre outras medidas, a quarentena, a
internação etc. Estamos falando de uma lei feita pelo Congresso e sancionada
pelo próprio presidente.
Depois, foi editada uma portaria do Ministério da
Saúde, outorgando a estados e municípios a possibilidade de decretação de
isolamento. Houve, ainda, uma portaria interministerial dos ministros da Saúde
e da Justiça estabelecendo que quem desrespeitasse as normas de contenção da
epidemia, praticaria o crime do artigo 268 do Código Penal, que é o de crime
contra a saúde pública. A portaria interministerial define também que quem agir
dessa forma está cometendo crime de desobediência. Ou seja, há todo um aparato
legal estabelecido no sentido de se adotar medidas urgentíssimas e severas para
proteger a saúde da população, e ele vai na contramão disso tudo por interesse
pessoal?
O senhor acredita que seja por interesse
pessoal?
Sim! Vou lhe dar o
exemplo de onde se extrai isso. Aquele dia em que ele foi ao Palácio da
Alvorada cumprimentar as pessoas no domingo (15 de março, em que houve
manifestações em apoio ao governo e contra o Congresso), ele disse uma frase
que indica tudo: “Isso não tem preço”, referindo-se ao apoio da população que
foi saudá-lo na frente do Palácio. Ele está na vanglória! Acha que o mito não
pode ter vírus. Aí ele começa a minimizar aquilo que tinha sido considerado
objeto de uma lei que estabeleceu quarentena. Ele está desrespeitando a lei.
Isso é falta de decoro. E mais: está colocando a saúde da população em risco
para a sua vanglória.
Ele quer ser cumprimentado, ser abraçado, tirar selfie!
Por outro lado, ele sabe que vem uma crise econômica por aí. Ele quer dar um
jeito de jogar a culpa da crise econômica para cima dos governadores e
prefeitos, mesmo ao preço de complicar a saúde da população.
Mas isso pode
ser visto como oportunismo, não acha?
É oportunismo! É
muito dizer para as pessoas saírem para a rua. Ele está se aproveitando de uma
população que é na grande parte sofrida, que está trancada em casa, apertada em
pequenos cômodos, com as crianças, preocupada com o emprego, com as contas para
pagar. É claro que as pessoas querem voltar à vida normal, querem garantir o
dinheiro do mercado, do aluguel. É lógico que ele vai ser festejado pela
população que quer liberdade. Quem não tem a capacidade de analisar a gravidade
da situação e vê o presidente falando que é uma gripinha, pensa que estão
exagerando. Isso é criminoso.
Ele prefere jogar com esse tipo de comportamento,
colocando em risco a saúde das pessoas, para salvaguardar o seu prestígio. Isso,
evidentemente, lá na frente, pode também acabar com o cartaz dele, se começar a
ter mortes e mais mortes. Mas ele não está preocupado com isso. Ele já disse
que “morte vai ter”. Isso é a maior falta de sensibilidade com o seu povo. É
falta de decoro mais profundo. Então, não há dúvida nenhuma do que está
caracterizado, seja no Código Penal, no artigo 268, seja o crime de
responsabilidade.
O senhor
acredita que há ambiente para a abertura de um processo de impeachment?
Tenho falado com
muitas pessoas da classe política, e acho que a pergunta é outra: convém abrir
um processo desse tipo? Creio que não. Eu recomendei a uma entidade
profissional o caminho de representar ao procurador-geral da República para que
ele avaliasse o crime do artigo 268, com o pedido de interdição, já que parece
que é um caso de paranoia. Aparentemente, o PGR não vai aceitar nada
relacionado a isso. Acho que o presidente se aproveitaria politicamente de um
pedido de impeachment.
Como ele se
aproveitaria?
Ele vai dizer que
ninguém estava preocupado com a epidemia, que os governadores queriam apenas
tirá-lo do cargo. Ele vai colocar suas tropas virtuais e reais na rua para
dizer que querem o cargo dele, que ele é vítima de golpe. Ou seja, vai
politizar a questão, em vez de enfrentá-la como deve ser enfrentada, com
seriedade, com base na ciência, com base na ponderação. Aliás, como fizeram
outros líderes mundiais, que chamaram para si a responsabilidade pela crise de
saúde pública e a crise econômica, que todo mundo vai passar.
O fato é que
estamos em uma sinuca de bico. Por isso, acho que todo mundo tem de se
manifestar contra os atos dele, porque, afinal de contas, são crimes contra a
saúde pública, são crimes de responsabilidade, mas não é hora de discutir isso
(a saída do presidente)
Por que não
discutir isso?
Porque nesse
instante temos uma guerra fundamental a travar: a guerra contra o vírus.
Abriríamos uma nova frente de luta política, que tiraria o foco do combate à
epidemia. Se quiserem tirá-lo, tirem depois. Se fizermos isso, ele vai colocar
suas tropas virtuais e reais na rua para dizer que só queriam o cargo dele, que
ele é vítima de um golpe, que não deixaram ele governar. Em suma, vai politizar
a questão, em vez de enfrentá-la com seriedade, com base na ciência, com base
na ponderação.
O que deve ser
feito na sua opinião?
Olha, acho que com
louco deve se fazer o seguinte: deixe o maluco no seu universo paralelo. É a
única forma de levar adiante o trabalho no meio dessa situação séria. Deixe ele
fazer as palhaçadas dele. Deixe que ele vá à padaria, à Ceilândia, deixe ele
combinar uma coisa com o ministro da Saúde de manhã e fazer outra à tarde.
O
único jeito de não desviar a atenção para o combate à pandemia é esse. Ao mesmo
tempo, as entidades da sociedade civil têm de denunciar, sejam as da área
médica, seja a Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), cientistas, todos têm de
denunciar que existe um crime, mas pensando que não é a hora de desperdiçar
esforços com outra causa, a não ser o combate à epidemia, que ainda está no
começo, infelizmente.
O senhor, então,
não escreveria um pedido de impeachment do presidente Bolsonaro?
Eu escreveria,
tecnicamente falando, mas diria que não é a hora de fazer isso. Sabe quando
tempo demora para iniciar o processo e afastar o presidente? Pelo menos três
meses. Daqui a três meses acabou a pandemia, espera-se.
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