Exame.com - Vanessa Barbosa
Dia 25.08.2019
© iStock/Thinkstock Amazônia: floresta presta serviço ambiental
inestimável.
São Paulo – O
cientista norte-americano Philip Fearnside conhece a Amazônia como poucos. Ele fincou os pés na região
no final dos anos 1970 e chegou a viver a beira da Transamazônica em
experiência de campo para seu doutorado. Não à toa, tornou-se um dos nomes mais
respeitados internacionalmente quanto o assunto é a maior floresta
tropical do mundo. Em 2007, o ecólogo recebeu o Prêmio
Nobel da Paz pelo Painel Intergovernamental para Mudanças Climáticas (IPCC).
Fearnside é
pesquisador titular há mais de quatro décadas no Instituto Nacional de
Pesquisas da Amazônia (Inpa), um dos mais importantes centros de pesquisa sobre
o bioma, que estuda desde o impacto da perda de floresta sobe os regimes de
chuvas até o desenvolvimento de produtos a partir da biodiversidade amazônica.
Em entrevista para
o site EXAME, o cientista
critica as decisões do governo federal para a pasta ambiental e destaca o papel
central que a Amazônia desempenha no equilíbrio do clima planetário.
Segundo ele, a
morte da floresta emitiria mais gases de efeito estufa para a atmosfera do que
a humanidade tem emitido através de suas atividades, como queima de combustível
fóssil para geração de energia e uso da terra. Isso iniciaria um processo
incontrolável de aquecimento global, com graves consequências para as
sociedades humanas.
“O fato de termos
um governo que deliberadamente ataca o meio ambiente é muito grave e estimula
um estado de impunidade e o aumento do desmatamento que estamos vendo. Não dá
para esperar três anos e meio para o fim do mandato atual para começarmos a
fazer nossa parte no combate às mudanças climáticas, precisamos de ações
imediatas, que passam pelo combate ao desmatamento e reconhecimento do
aquecimento global”, diz o ecólogo.
Confira a
entrevista na íntegra a seguir:
EXAME: O governo anunciou cortes nos
orçamentos para pesquisa no Brasil. Como isso afeta o trabalho dos cientistas e
institutos que estudam meio ambiente, incluindo o Inpa?
Fearnside: Há limitações claras aí, como a falta de
dinheiro, que afeta os investimentos em pesquisa e a falta de pessoas, já que
não estão contratando gente, não tem editais, não tem concursos para substituir
quem está indo embora. Os centros de pesquisas estão encolhendo. É uma situação
que tem se agravado ao longo dos anos, mas se torna ainda mais crítica sob o
atual governo, que deixou o país sem concursos para contratação de pessoal.
Isso é terrível. Por exemplo, quase metade das pessoas que trabalham no Inpa
terão direito de se aposentar dentro de um ano. Além disso, nem dinheiro para
bolsa de pesquisas tem. Por conta dos cortes, o CNPq [Conselho Nacional de
Desenvolvimento Científico e Tecnológico] suspendeu a concessão de novas bolsas
de pesquisa e talvez nem haja dinheiro suficiente para pagar as bolsas
existentes depois de setembro.
EXAME: Recentemente, Noruega e
Alemanha suspenderam as doações de recursos ao Fundo Amazônia, principal
ferramenta para preservação da floresta. Em resposta, o governo federal
“desdenhou” dos milhões de dólares já doados. Como o sr. avalia esses eventos?
Fearnside: No caso do Fundo Amazônia, os recursos ajudam
no trabalho de preservação da floresta. Tanto na parte de monitoramento que o
Inpe [Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais] realiza quanto nas ações de
fiscalização a cargo do Ibama, além de muitas outras iniciativas de Ongs,
governos estaduais e demais entidades. Infelizmente, com a alta de desmatamento
na floresta, esses países doadores suspenderam os repasses, mas isso faz parte
do acordo, já que as doações são atreladas à redução do desmatamento. É um
quadro gravíssimo. E é evidente que o atual ministro do Meio Ambiente e o
presidente se empenharam em desacreditar o programa, criando uma ideia de que
há corrupção no processo do Fundo. Também tentaram usar verba das doações para
indenizar proprietários rurais. Há muito sinais ruins surgindo do atual
governo. Inclusive, essa seria a razão para o aumento do desmatamento, a
retórica do governo cria um ambiente de impunidade.
EXAME: Em 2007, ao em que o sr.
recebeu o Nobel da Paz pelo IPCC, o Brasil coibia fortemente o desmatamento na
Amazônia. Já passaram 12 anos desde então. Como o sr. recebeu a notícia de que
o desmatamento aumentou mais de 40% entre julho de 2018 e agosto deste ano,
conforme indicaram os dados do sistema de monitoramento Deter, do Inpe?
Fearnside: Sem surpresas. Eu já imaginava que isso fosse
acontecer devido ao discurso e às ações que o governo vem adotando desde o
começo do ano. Mas o que me surpreendeu foram as acusações contra o Inpe. A
ideia aventada pelo presidente de que os dados sobre desmatamento são
manipulados com ajuda de ONGs é totalmente falsa, pura fantasia. Agora, me
preocupa o que vai acontecer com o Inpe, que tem um novo diretor [o militar
Darcton Policarpo Damião] que, pelo o que li a respeito, diz não estar
convencido da comprovação do aquecimento global.
Uma pessoa que diz
isso não tem qualificação para assumir o Inpe, é como dizer que o homem não
pisou na lua. Atualmente até o próprio presidente nega isso e já indicou dois
ministros que também negam esse fenômeno. Não temos mais como esperar três anos
e meio para o fim do mandato do atual governo para começar a fazer nossa parte
no combate às mudanças climáticas, precisamos de ações imediatas, que passam
pelo combate ao desmatamento.
EXAME: No Acordo de Paris, o Brasil
se compromete a reduzir 43% das emissões nacionais até 2030 comparado a 2005.
Na situação atual, como é possível esse objetivo? E qual o papel da Amazônia
nesse processo?
Fearnside: O primeiro ponto mais importante é combater o
desmatamento. Claro, que também precisamos reduzir o uso de combustível fóssil,
mas no caso do Brasil, diferentemente de outros países que não têm tanto
desmatamento, a perda de floresta acaba sendo muito importante aqui. As áreas
preservadas na Amazônia representam um enorme potencial de emissão de carbono
se forem desmatadas. Quando Bolsonaro esteve aqui em Manaus no final de julho,
ele prometeu asfaltar a rodovia BR-319, que liga Manaus, no Amazonas, a Porto
Velho, e também falou de planos para abrir novas estradas. Isso tem enormes
impactos para o desmatamento no futuro.
Ao abrir grandes
blocos de floresta a oeste do rio Amazonas, você gera mudanças na geografia do
desmatamento que implicam em grandes emissões de gases efeito estufa, além de
todos os outros impactos que a perda da floresta causa, como perda biodiversidade
e todo potencial de pesquisa e desenvolvimento de soluções a partir dela, e
também a reciclagem de água. A floresta amazônica é essencial para manter as
chuvas em SP e em outros lugares no sudeste do Brasil e garantir água para a
sobrevivência de grandes centros de população.
Durante o período
chuvoso, em dezembro, janeiro e fevereiro, quase 70% da chuva no Sudeste vem da
Amazônia, e não do oceano Atlântico. Isso é grave para a agricultura e
suprimento de alimentos, de água e geração de hidroelétricas, já que os
reservatórios são abastecidos pelos ciclos de chuvas. Se atualmente, a situação
dos reservatórios preocupa, a ponto de já termos usado volume morto, imagina se
perdermos toda a água que vem da Amazônia. A floresta nos presta um serviço
ambiental inestimável.
EXAME: Qual será o impacto sobre o
clima do Brasil e do mundo se a Amazônia tombar?
Fearnside: O Brasil é um ponto chave no equilíbrio climático,
por conta da quantidade de carbono estocada na floresta amazônica, tanto nas
árvores quanto no solo. Não podemos ultrapassar os chamados tipping
point, os pontos de inflexão, em que a floresta entraria num ciclo
irreversível de perda de árvores, queimadas e liberação de gás de efeito
estufa, que consequentemente pioraria as mudanças climáticas. Esse é um
dos pontos para o equilíbrio ambiental. A morte da floresta emitiria mais gases
de efeito estufa para a atmosfera do que a humanidade tem emitido através de
suas atividades, como queima de combustível fóssil para geração de energia e
uso da terra, e iniciaria um processo incontrolável de aquecimento global.
E aí precisamos
lembrar que grandes problemas ambientais, como o aquecimento global, têm
enormes impactos sobre as populações, especialmente as mais pobres. Lembra dos
relatórios que a Dilma Rousseff tentou suprimir em 2015? Mais de 300
pesquisadores produziram o estudo [Primeiro Relatório de Avaliação Nacional do
Painel Brasileiro de Mudanças Climáticas, PBMC], que traça mudanças climáticas
em curso no Brasil e seus impactos até o ano de 2040. O agravamento da seca em
regiões que já vivem em situação limítrofe, como o Nordeste do Brasil, seria um
desastre, que criaria dezenas de milhares de refugiados ambientais.
O fato de termos um
governo que deliberadamente ataca o meio ambiente é muito grave e estimula esse
estado de impunidade e aumento do desmatamento que estamos vendo. Mais grave
ainda é negar o aquecimento global. Não temos tempo para não agir sobre esse
assunto, é uma coisa com consequências fatais, pessoas vão morrer e cidades vão
colapsar. É verdade que os problema ambientais também existiam em governos
anteriores, mas o quadro geral piorou muito com o atual governo.
EXAME: O sr. publicou um artigo
recentemente na revista Environmental Conservation em parceria com o
pesquisador Lucas Ferrante, também do Inpa, que critica a chamada “agenda de
morte” do governo para o meio ambiente. O que seria essa agenda?
Fearnside: Como o próprio título do artigo sugere, o novo
presidente do brasil ameaça o meio ambiente, povos locais e o clima global. Há
todo um conjunto de propostas legislativas da bancada ruralista para reduzir
áreas indígenas, unidades de conservação, limitar a fiscalização e basicamente
acabar com o licenciamento ambiental, que é uma ferramenta para evitar grandes
impactos, além da liberação de agrotóxicos. É uma coisa gravíssima. Tem muito
argumento de que os Estados Unidos derrubaram florestas e agora são um país
rico.
Isso não se
sustenta. Quando você tira floresta, você empobrece os solos para a
agricultura. As regiões americanas que mais tinham florestas hoje são
bolsões de pobreza, a população vive com ajuda do governo. Há exceções?
Sim, o Paraná no Brasil devastou florestas para expansão agrícola, mas tem o
solo muito bom, é uma característica local. Este não é o caso da floresta
amazônica, o solo é diferente lá. É mito achar que destruir floresta vai ser
bom para o desenvolvimento do país.
É o mesmo discurso
de que abrir tudo para a mineração é o caminho para o progresso. Existe uma
“maldição dos recursos naturais”, que explica a ironia presente no fato de que
os países mais ricos em minérios são os mais miseráveis, veja o Congo e a
Bolívia, por exemplo. Há toda uma literatura explicando porque esse tipo de
riqueza não leva a melhoria de um país. Começou com a chamada doença holandesa.
Nos anos 60, a Holanda descobriu gás e petróleo no mar do norte e todo mundo
imaginou que isso melhoria o país, mas de repente todos os níveis de bem estar
humano caíram, houve um impacto inverso ao esperado, dada a concentração de
recursos em uma só atividade.
É o mesmo caso da
mineração e muitos países, que cria um custo social muito grande. Essa mesma
lógica ameaça a Amazônia, com o projeto para liberar mineração lá. Outra
proposta perigosa é a do Flávio Bolsonaro, para acabar com o conceito de
Reserva Legal. Mas Reserva Legal é o que existe em termos de regulamento para
restringir desmatamento dentro de propriedade privadas e é essencial para
manter os serviços ambientais da floresta.
EXAME: Qual o melhor caminho para
garantir o desenvolvimento social, econômico e ambiental da Amazônia?
Fearnside: Tem diferentes problemas aí. Tem problemas urbanos
das cidades amazônicas, os problemas de sustentar as pessoas que moram no
interior em regiões de floresta e o problema das áreas já desmatada para
pastagens. No caso das cidades, há o desafio de criar empregos suficientes para
sustentar as populações urbanas e ter recursos para investir da infraestrutura
da cidade, principalmente em saneamento básico. Para as populações que moram na
floresta, defendo os serviços ambientais. Para isso, precisamos mudar a base da
economia, que hoje gira em torno da destruição da floresta, você desmata, vende
madeira, depois transforma em pastagem e por aí vai. Temos que mudar para um
modelo baseado na manutenção da floresta de pé.
Preservar a
biodiversidade, garantir a reciclagem da água e evitar o aquecimento global
valem mais do que desmatamento. Áreas desmatadas ocupadas por pastagem não
sustentam a população na Amazônia, pois é uma atividade com demanda mínima de
mão de obra. O agropecuarista pode ficar rico, mas sozinho. Devemos, portanto,
desencorajar esse tipo de desenvolvimento. Hoje, temos muitas populações em
assentamentos sustentadas pelo governo, através de programas como o Bolsa
Família. As áreas ainda protegidas do desmatamento precisam ser alvo desse tipo
de arranjo, de pagamento por serviço ambiental. Mas é importante que as pessoas
que recebam benefício por conta da floresta, tenham consciência da importância
da floresta de pé.
EXAME: Os incêndios na Amazônia
chamaram atenção mundial, que motivou toda uma pressão internacional sobre o
governo agora. Isso pode ser bom para a floresta?
Fearnside: O governo presta atenção às pressões
internacionais. Acredito que foi por isso justamente que o presidente Bolsonaro
não acabou de vez com Ministério do Meio Ambiente, como prometeu na campanha.
Houve uma preocupação quanto aos efeitos sobre as exportações de produtos
agropecuários brasileiros. Mesmo assim, o governo conseguiu desestabilizar a
pasta sem desfazê-la abertamente. A parte de fiscalização praticamente acabou,
agora o Ibama tem que avisar quando e onde vai fiscalizar. Mas esse exemplo
mostrou que, sim, o país presta atenção ao risco de boicote aos produtos
brasileiros. Evidentemente, o governo não escuta cientistas, mas ele não é
surdo, alguma coisa, ele escuta.
EXAME: O que todo
brasileiro deveria saber sobre a floresta amazônica?
Fearnside: A medida que a população fica mais consciente sobre
o que está acontecendo, também pode influenciar as decisões políticas. É muito
importante que os sistemas democráticos funcionem. É importante as pessoas se
informarem mais sobre a Amazônia, mas também ter a experiência de estar na
floresta. Mesmo em Manaus, o grosso da população nunca esteve dentro da
floresta, vive no asfalto a vida inteira.
Também é
fundamental entender que por trás do desmatamento há dois vetores fortes, que
são a criação de pastagem e área de plantio de soja, que será usada para
produzir ração animal para bois e porcos. São atividades que demandam mais
recursos do que a população brasileira consome. Cada hectare a mais desmatado
na Amazônia é para produzir para exportação, não para alimentar a população
brasileira. E, claro, é importante que as pessoas saibam que o aquecimento
global é um problema real que desencadeia uma série de reações desastrosas para
vida e que a Amazônia tem papel central na manutenção do equilíbrio.
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