Por João Miranda
Lavra Palavra
“Através da
multiplicação de uma miríade de aparelhos de difusão, gradativamente a
ideologia dominante ganha notoriedade e força, adquire ressonância em
diferentes espaços da vida social e as formas de atuação da burguesia
estabelecem conexões nacionais e transnacionais.”
Nos últimos anos
temos acompanhado um significativo avanço do pensamento conservador, que
propaga discurso de ódio sobre minorias, mulheres, movimentos sociais e
sindicatos, exalta o mercado como espaço de realização das liberdades, persegue
professoras e professores e a liberdade de cátedra.
Em tempos difíceis
como o nosso, o livro do jovem pesquisador Flávio Henrique Calheiros Casimiro,
intitulado “A nova direita: aparelhos de ação política e ideológica no Brasil
contemporâneo” (Expressão Popular, 2018), vem se somar aos esforços de pesquisa
para que as pessoas interessadas em conhecer os meandros, os dutos e as vias
desse “refluxo” reacionário possam encontrar chaves de interpretações.
Fruto de sua tese de
doutorado defendida no Programa de Pós-Graduação em História Social da
Universidade Federal Fluminense, sob a orientação da Profa. Dra. Vírginia
Fontes, a obra aponta que, tendo como sustentáculo uma série de aparelhos
privados de hegemonia (APHs), a burguesia brasileira atualiza as suas
estratégias de mobilização e articulação dos mecanismos de dominação de classe
no Brasil a partir do processo de redemocratização.
Como se sabe, na
década de 1980 as ruas do país foram ocupadas por grandes manifestações,
greves, piquetes, organizados por militantes, artistas, trabalhadores,
intelectuais, por diferentes movimentos sociais e organizações políticas.
Apesar das irreverências mil, como lembra a letra da canção O bêbado e a
equilibrista, o processo de redemocratização foi lento, gradual e seguro para
as estruturas dominantes do país.
A burguesia
brasileira, alicerçada por suas ligações transnacionais com o grande capital
internacional, reage em múltiplos níveis às formas de organização do conjunto
da classe trabalhadora, segundo Casimiro. Tendo como recorte temporal o período
de 1980 a 2014, o autor defende a tese de que a burguesia busca redefinir suas
bases de atuação, adequando-se às novas maneiras de se relacionar com o Estado
em um país que, em meados dos anos 1980, não estava mais sob a égide da
Ditadura Civil-Militar (1964-1985).
As estratégias de
dominação da classe dominante são, historicamente, das mais variadas. Para
Casimiro, a complexificação específica perpetrada a partir da redemocratização
é a estratégia de “organização que se materializa por meio dos aparelhos da
burguesia, porém integra crescentemente o próprio Estado. Isto vem ganhando
projeção tanto de forma deliberada quanto inconsciente”, através da
instrumentalização, objetivação e reprodução de seus projetos e valores em
diversos meios, de forma que os seus interesses tomem amplitude e intensidade.
Paulatinamente, vão se radicalizando.
Em sua obra, Casimiro
não tem a pretensão de esgotar todos que surgem a partir dos anos 1980. Ele
analisa aqueles que possuem estratégias de atuação diferentes das vistas
anteriormente, apontando que essa conjuntura de articulação e mobilização da
burguesia é um processo que não se encerra com a concretização da Assembleia
Nacional Constituinte, de 1987 a 1988, mas que se perpetua ao longo das últimas
décadas em um contexto formalmente “democrático”. Ou seja, para manter-se
dominantes, precisavam se reorganizar. Através da multiplicação de uma miríade
de aparelhos de difusão, gradativamente a ideologia dominante ganha notoriedade
e força, adquire ressonância em diferentes espaços da vida social e as formas
de atuação da burguesia estabelecem conexões nacionais e transnacionais.
A atuação se organiza
no sentido pragmático, estrutural e doutrinário. Apesar de o estudo
sistematizar a série de aparelhos a partir das suas formas de atuação, o autor
aponta que essa separação é unicamente de caráter analítico e didático, haja
vista que cada um dos aparelhos desenvolve, em certa medida, um pouco de cada
uma dessas estratégias ao mesmo tempo. No entanto, cada aparelho prioriza
determinada estratégias e táticas de ação e é reconhecido e classificado por
Casimiro por esse caminho adotado.
No sentido
“pragmático” refere-se aos aparelhos da burguesia que agem elaborando
diretrizes, intervindo no processo de constituição de políticas públicas,
dentre outras maneiras. A principal arena para estas organizações foi a
Assembleia Nacional Constituinte, para a qual financiaram campanhas, lançaram
candidatos próprios e mobilizaram quadros de empresários urbanos e rurais. Os
APHs de ação estrutural analisados são: Câmara de Estudos e Debates Econômicos
e Sociais (CEDES), Grupo de Mobilização Permanente (GMP), Confederação Nacional
das Instituições Financeiras (CNF), Associação Brasileira de Defesa da
Democracia (ABDD), União Democrática Ruralista (UDR), União Brasileira de
Empresários (UB), Movimento Cívico de Recuperação Nacional (MCRN), Movimento
Democrático Urbano (MDU), Pensamento Nacional das Bases Empresariais (PNBE),
Frente Nacional pela Livre Iniciativa (FNLI). Neste ínterim, Casimiro reflete
ainda sobre o processo de complexificação da sociedade civil brasileira na
virada dos anos 1980 para os anos de 1990, destacando a atuação do Grupo de
Institutos, Fundações e Empresas (GIFE) e o Instituto Ethos de Empresas e
Responsabilidade Social.
Os aparelhos de “ação
estrutural” são aqueles que, alicerçados em um projeto de poder – não raro
apresentado como se fosse este o interesse de toda a sociedade –, agem no interior
do aparelho estatal, dentre os quais Casimiro analisa o Instituto de Estudos
para o Desenvolvimento Industrial (Iedi), Instituto Atlântico, Grupo de Líderes
Empresariais (LIDE) e o Movimento Brasil Competitivo (MBC). Tais aparelhos
procuram influenciar a configuração da ossatura estatal, buscando a
naturalização de valores da ideologia de mercado e a aplicação, no seio do
Estado e na sociedade civil, de concepções – que variariam ao longo das décadas
–, tais como “empoderamento”, “responsabilidade social”, “empresa cidadã”,
“sustentabilidade”, com o intuito de reformular os seus mecanismos para
torná-lo “eficiente”.
Finalmente, no
sentido “doutrinário”, refere-se aos aparelhos de difusão doutrinária liberal
conservadora que agem através da propagação das diferentes matrizes do
pensamento liberal, promovendo também o recrutamento de intelectuais orgânicos.
Ensejam realizar sua doutrinação pautados pelos ditames do capital e da
economia de mercado. Os APHs de ação doutrinária analisados por Casimiro são o
Instituto Liberal (IL), Instituto de Estudos Empresariais (IEE), Instituto
Millenium (IMIL), Instituto Von Mises Brasil (IMB), Estudantes Pela Liberdade
(EPL) e o Movimento Brasil Livre (MBL).
O autor busca, então,
elucidar a atuação de dezenas de grupos, refletindo sobre o processo histórico
de constituição desses APHs, as suas formas de atuação, seus principais
intelectuais orgânicos, dentre outras características. O elenco de aparelhos
analisados nos permite ter uma visão panorâmica do conjunto desses grupos, além
de elucidar, dentre outras coisas, as suas interrelações e as tensões entre as
diversas frações da burguesia – tensões estas não raro deslocadas dos espaços
públicos para o interior do Estado, justamente porque o seu referencial teórico
de base gramsciana, sobre o qual trataremos em seguida, abarca a ampliação
seletiva do Estado. Trata-se, neste sentido, de um estudo monumental. Tal
panorama da nova direita trazido por Casimiro aponta a necessidade de que as
historiadoras e os historiadores se debrucem cada vez mais sobre o tema – e
nesse sentido o livro aponta muitos caminhos.
Um dos principais
referenciais de Casimiro é o intelectual sardo Antonio Gramsci, em especial, a
acepção de Estado ampliado gramsciana, segundo a qual o Estado possui, além da
sua dimensão coercitiva, uma outra, a da construção do consenso, a cultura. A
cultura é entendida em sentido amplo, integrando as concepções e visões de
mundo, valores, crenças, autopercepções de seu lugar na sociedade –
desenvolvidas a partir da organização e atuação dos seus aparelhos privados de
hegemonia ou de contra-hegemonia. Neste sentido, o Estado poderia ser
interpretado como a condensação das relações sociais presentes na sociedade
civil, que é o conjunto dos indivíduos organizados nos chamados aparelhos
privados de hegemonia ou de contra-hegemonia e cerne da ação/pressão política
consciente, dirigidas a certos objetivos; e presentes na sociedade política,
identificado pelo conjunto de aparelhos e agências do poder público, entendido
como o “Estado em sentido restrito”. Em linhas gerais, então, trata-se de um
conceito de Estado que engloba tanto a sociedade civil quanto a sociedade
política denominado de Estado ampliado ou integral.
Partindo da concepção
de Estado ampliado de Gramsci, Casimiro reflete a respeito da nova estratégia
de organização da burguesia brasileira, mais especificamente dos APHs. Esse
apontamento remete o autor à outra questão de ordem teórica: o conceito
gramsciano de aparelho privado de hegemonia (exemplos disso são os partidos,
sindicatos, igrejas, jornais, escolas, entidades ou associações de distintas
origens e objetivos, páginas nas redes sociais etc.). Trata-se de um conjunto
de organizações da sociedade civil que possuem, dentre outros objetivos,
difundir a ideologia dominante e organizar intelectuais orgânicos. Nesse
sentido, não há ideologia dominante sem a atuação dessas organizações, as quais
podem deter autonomia, para a qual o ingresso é voluntário, pressupondo
identidade de classe, e têm como objetivo manifestar e constituir base material
própria, desde que seja na perspectiva de legitimar os interesses da classe
dominante, articulados a esta, dialeticamente.
Casimiro aponta que o
papel dos intelectuais orgânicos é fundamental na busca pela legitimação de um
determinado projeto de poder no sentido de alçar uma condição de hegemonia.
Esse processo se dá tanto sob a forma de produção de consenso, quanto pelo
recurso da coerção. O estudo do habitus desses intelectuais orgânicos, assim,
tem grande importância para a análise, pois, a partir de Bourdieu, o autor pôde
refletir a respeito dos elementos de distinção e diferenciação estabelecidos,
os quais criam laços de vinculação e pertencimento, acomodando representações
desse espaço social.
A série de aparelhos
privados analisados por Casimiro evidencia a ampliação do Estado brasileiro,
demonstrando que não podemos reduzi-lo a seus órgãos, aparelhos e agências
administrativas. Ao mesmo tempo que criticam o Estado, os aparelhos analisados
ampliam-no imbricando-se a ele, promovendo assim uma espécie de reprivatização
“não-oficial” do mesmo, inscrevendo nele os seus objetivos como projetos de
interesse “nacional”, mas que na realidade são de classe. Assim, a nova direita
reconfigura a estrutural estatal “dialeticamente como veículo e resultado do
processo de atualização da dominação burguesa em sua expressão
capital-imperialista” (CASIMIRO, 2018, p. 465).
A obra de Casimiro
contribui também para elucidar quem é e como atua a nova direita, como também
faz cair por terra interpretações acerca do neoliberalismo que adotam o
pressuposto de que se trata de uma defesa e prática de negação do Estado,
pautado pelo capitalismo laissez-faire, expressão símbolo do liberalismo,
segundo o qual o mercado deve funcionar livremente sob a égide da
mão-invisível. Ainda que os ideólogos se arvorem como defensores do “Estado
mínimo”, a teia de atuações dos aparelhos privados analisada por Casimiro
evidencia que as suas estratégias têm como sustentáculo a inter-relação com o
Estado, que é acionado de diferentes maneiras, seja para exercer a coerção,
seja para “educar”, propiciando a intensificação e o aprofundamento da
exploração e expropriação do conjunto da classe trabalhadora e rifando recursos
naturais e direitos sociais histórica e arduamente conquistados.
Por fim, cabe
destacar que o trabalho de Casimiro permite evidenciar que a nova direita não é
uma absoluta novidade, a sua edificação não foi repentina, muito menos surge
nas Jornadas de Junho de 2013, como defendem alguns setores da esquerda. Após
mais de cinco anos do maior ciclo de manifestações de rua no Brasil dos últimos
30 anos, os sentidos desse acontecimento ainda permanecem em disputa – em
especial, entre as forças do campo progressista. Dentre as diferentes teses
sobre esse processo, há uma chave interpretativa, comumente presente nas
formulações de intelectuais do Partido dos Trabalhadores, que imputa a Junho
unicamente um caráter de direita, reacionário, segundo o qual essas
manifestações foram responsáveis pela derrocada do governo Dilma e, acima de
tudo, pelo “despertar” da nova direita. O trabalho de Casimiro tem o trunfo de
nos apresentar a historicidade do processo que gestou a nova direita,
evidenciando que se trata de algo que vem ocorrendo nas últimas décadas,
desenvolvendo-se, adquirindo musculatura e ampliando-se no cenário político
brasileiro ao longo dos anos, tendo como preâmbulo na redemocratização da
década de 1980.
Por tudo isso diria
que a obra de Casimiro é, no âmbito da luta de classes, uma importante munição
que contribui para que as trabalhadoras e os trabalhadores, munidos com as
armas da crítica, possam, sem paladinos, mas na luta, erguer de baixo para
cima, juntos, um admirável mundo que opere noutra lógica.
Referências
Bibliográficas
CASEMIRO, F. H. C. A
nova direita: aparelhos de ação política e ideológica no Brasil contemporâneo.
Niterói. Editora Expressão Popular 1. Ed, 2018.
Notas
Imagem em destaque:
La Edad de la Ira- Oswald Guayasamin
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