Foto: Marcelo Camargo/Agência Brasil | Arte: Justificando |
Yahoo Notícias, 25
de julho de 2019
Esta é uma série especial de artigos
elaborados especialmente para o Justificando.
Nesta série de três conteúdos, o
renomado professor Juarez Cirino dos Santos faz uma análise aprofundada sobre
os desdobramentos da Vaza Jato que expôs o conluio entre Juiz Sergio Moro e
procuradores do MPF nos casos da Lava Jato.
A notável
parcialidade do ex-Juiz Moro
A atitude parcial do Juiz Sergio Moro
na condução do caso Lula, a espinha dorsal da Operação Lava
Jato da 13ª VCF de Curitiba, era um fato conhecido dos advogados que
atuavam na defesa de acusados nessa operação. A parcialidade do Juiz Moro era
cantada em prosa e verso pelos corredores do prédio da Justiça Federal de
Curitiba, ou nos cafés frequentados por criminalistas de todo Brasil.
A convicção íntima de uma condenação
anunciada em mínimos detalhes, ou em grandes destaques comportamentais do Juiz
Moro, era manifestada por estudiosos da academia e por profissionais do sistema
de justiça criminal. Por exemplo:
- o significado de eventos sociais ou políticos em que o magistrado
aparecia ao lado de inimigos pessoais de Lula, como João Dória, Prefeito e hoje
Governador de São Paulo;
- ou na mensagem subliminar de prêmios e honrarias de entidades
adversárias de Lula (ou das políticas sociais de Lula), como o Prêmio
Faz Diferença do Jornal O Globo;
- ou a festiva cumplicidade com inimigos políticos de Lula, como a
sorridente intimidade da foto com Aécio Neves, em outra solenidade de entrega
de prêmios - comportamentos inexplicáveis, exceto pelo partidarismo político,
com favoritismo do setor político conservador e predisposição ou preconceito
contra Lula, violando o princípio da imparcialidade da magistratura (art. 8º,
inc. III, do Código de Ética da Magistratura);
- ou a discriminação ostensiva contra advogados de defesa de acusados
da Operação Lava Jato - exceto advogados de delações
premiadas, que construíam condenações criminais futuras mediante vantagens -,
em especial, a agressividade contra os advogados de defesa de Lula, registrada
em episódios notáveis da mídia brasileira - certamente, o sinal mais relevante
da escancarada parcialidade do Juiz Moro, que parecia brotar dos poros do
personagem, como o suor brota da pele, infringindo outra dimensão do princípio de
imparcialidade, que impõe o dever de igualdade no tratamento das partes,
proibindo tratamento discriminatório (art. 9º, inc. III, do Código de Ética da
Magistratura).
A Psicanálise ajuda
a explicar Moro?
Como explicar a conduta anômala de
Moro, desviante do padrão de consciente imparcialidade da magistratura
brasileira? Se, como ensina Freud, as emoções estão na base das ideias e, por
isso, movem o mundo, então os impulsos ou afetos que moveram o Juiz Moro seriam
sentimentos de ira contra a corrupção, que infesta a administração pública das
sociedades capitalistas? Se assim fosse, essa ira não seria nada santa, pela
concentração seletiva em Lula e no Partido dos Trabalhadores - apesar da falta
de prova das imputações -, e pela leniente vista grossa aos políticos de outros
partidos, apesar de atos de corrupção evidentes. Ou o Juiz Moro teria sido
movido pelo sentimento do medo, esse poderoso impulso do ser humano ligado ao
instinto de sobrevivência - o medo de a corrupção tomar conta do mundo, ou
destruir a civilização que alardeia preservar?
Mas, então como explicar as fotos com
cidadãos nada exemplares, ou contatos com notórios corruptos sem medo do fim do
mundo ou do colapso da civilização? Ou seria, enfim, o sentimento de orgulho,
ou a emoção da vaidade de promover uma guerra contra a corrupção do poder
público? É possível, porque o poder se exerce como guerra e o direito é uma
técnica de dominação brutal, segundo Foucault, mas, então, como lidaria com o sentimento
de culpa por condenações sem prova, ou com base em delações premiadas obtidas
pela tortura da prisão?
Excluir Lula: a
chave para eleger a direita política
As atitudes políticas ou de
parcialidade manifesta do Juiz Moro na Operação Lava Jato, indicadas
pelo papel decisivo sobre as ações investigativas da força tarefa coordenada
por Deltan Dallagnol, mas controlada de fato pelo ex-Juiz, que decidia sobre
estratégias ou táticas particulares da repressão penal, são claras. A
investigação jornalística de The Intercept sobre as ações
da Operação Lava Jato apresentou a prova definitiva: excluir
Lula do processo eleitoral - com 87% de aprovação popular e líder das pesquisas
eleitorais - era a chave para a
vitória de Bolsonaro e o passaporte carimbado para Moro ser
Ministro da Justiça. E o mais estarrecedor: essa chave sempre esteve nas mãos
de Moro, o Juiz que cancelou princípios do processo penal para (i) condenar e
prender Lula, (ii) garantir a vitória eleitoral da direita política nas
eleições presidenciais e (iii) assegurar sua própria posse no cargo de Ministro
da Justiça do novo Governo. Alguém pode imaginar maior lesão aos interesses do
povo brasileiro, ou às instituições republicanas e democráticas do Estado de
Direito?
A percepção pública da conduta de
Moro e dos procuradores da Lava Jato, de heróis da luta contra a corrupção
mudou para a de ideólogos da direita conservadora e fascista, que abusavam dos
poderes do cargo com objetivos político-partidários, em palavras gravadas e em
ações concretas de investigação criminal contra o PT - eis o fato político mais
notável da história recente do País.
A força
tarefa dos Procuradores da República
Procuradores da República são partes
no processo penal, que promovem a ação penal na justiça federal, produzem a
prova da imputação, apresentam os argumentos da acusação e interpõem recursos
das decisões judiciais. Mas os procuradores da Operação Lava Jato,
que sempre alegaram posições apolíticas, foram muito além de seu papel
investigativo e processual: urdiram tramas ilegais para impedir a vitória
eleitoral do PT, como indicam conversas do MPF para inviabilizar entrevista de
Lula com Mônica Bergamo (autorizada pelo Ministro Lewandowski, do STF), porque
teria por objetivo eleger Haddad ou permitir a volta
do PT ao poder nas eleições de 2018, como informa The
Intercept. Parece inacreditável, mas essas conversas oscilavam de
estratégias para derrubar a decisão do Supremo até hipóteses para reduzir o
impacto político-eleitoral da entrevista, combinando violação à liberdade de
imprensa com a motivação político-ideológica para evitar o retorno do
PT ao poder.
O coordenador da força
tarefa Dallagnol, contrário à entrevista de Lula, lembrando o objetivo
de impedir o retorno do PT ao poder, pede rezas a
uma Procuradora da República para esse fim, que confirma as rezas e Dallagnol
conclui: Valeu, Carol. Reza, sim! Precisamos, como País. Procuradores
da República têm o direito de rezar para obter graças ou bênçãos segundo suas
crenças, porque a Constituição assegura a liberdade de consciência e de crença,
mas não têm o direito de orientar a ação repressiva da instituição por
facciosismo político-partidário.
Ainda a novela da
entrevista de Lula
E, como informa The Intercept,
essas conversas ocorriam em reuniões de várias horas, em que funcionários
públicos pagos pelo dinheiro do contribuinte agiam como estrategistas de
partidos conservadores contra o PT de Lula. Por exemplo, em caso de
inevitabilidade da entrevista, consideravam hipóteses alternativas menos
nocivas:
a) uma coletiva de imprensa poderia
diluir os efeitos políticos da entrevista;
b) uma entrevista
coletiva no mesmo dia seria melhor que uma entrevista direcionada;
c) ou até sugestão de manobras da
Polícia Federal para uma entrevista após as eleições, porque a
determinação do STF não fixava data - assim, poderiam não evitar a
entrevistae, também, não descumprir a decisão, propôs outro
membro da força tarefa do MPF;
d) outro membro do MPF, após achar
inviável uma coletiva de imprensa, reconhece apenas dois caminhos:
ou o circo armado da entrevista da Folha de S. Paulo, ou
a extensão para os demais órgãos, útil para criar confusão e
frustrar os efeitos da entrevista.
O inconformismo da força
tarefa contra Raquel Dodge, que não queria recorrer da decisão de
Lewandowski, ou o pavor da Lava Jato com a possibilidade da entrevista -
afinal, como disse alguém, a vitória de Haddad iria libertar
Lula e colocar na cadeia os PR da Lava Jato - cessaram com liminar do Min. Fux
cancelando o evento, sob argumento de necessidade de relativização
excepcional da liberdade de imprensa - uma decisão que fere o papel do
STF como Guardião da Constituição. E sobrevém a festa dos defensores da ordem
jurídica pelo cancelamento de garantia fundamental do Estado de Direito, com
a força tarefa do MPF mostrando sua cara político-partidária,
confiante na insondável clandestinidade de seus compromissos eleitorais,
negados com ênfase todo tempo.
As dúvidas de
Dallagnol: acusação por notícia de jornal e indícios frágeis
Alguns dias antes da Denúncia o
coordenador da força tarefa estava atormentado por dúvidas
sobre o ponto central da acusação: se Lula teria recebido o tríplex por
favorecimento da OAS, nos contratos com a PETROBRAS. Em mensagem aos incendiários
ROJ, em 09 de setembro de 2016, dizia Dallagnol:
“Falarão que
estamos acusando com base em notícia de jornal e indícios frágeis... então é um
item que é bom que esteja bem amarrado. Fora esse item, até agora tenho receio
da ligação entre Petrobras e o enriquecimento, e depois que me falaram to com
receio da história do apto. São pontos em que temos que ter as respostas
ajustadas e na ponta da língua.”
Como se vê, Dallagnol tem consciência
da fragilidade da prova, porque sabe que denuncia Lula com base em
notícia de jornal e indícios frágeis. Na verdade, quando diz que
outros falarão que estamos acusando ..., refere a crítica de seu
próprio superego, consciente da temeridade de um ego afoito,
muito capaz de acusações levianas. Mas a insegurança de Dallagnol é ainda
maior: diz ter receio da ligação entre Petrobras e o enriquecimento -
ou seja, o receio de inexistir ligação entre a Petrobras e a suposta propina de
Lula é, de fato, a expressão psíquica da própria consciência de ausência de
relação! Seja como for, ninguém dissipou a dúvida de Dallagnol: se o tríplex poderia
ser apresentado como propina de Lula, no caso de corrupção da Petrobras. Não
obstante a dúvida, apresentou a Denúncia contra Lula.
E, como esclarece The
Intercept, a questão era decisiva, também sob outro ângulo: se positiva a
ligação, Moro seria o juízo competente; se negativa, Moro careceria de
competência para o processo. Como se sabe, a questão gerou um conflito entre
a força tarefa do MPF e o MP de São Paulo: o MPF disse que o
imóvel tinha relação com a corrupção da Petrobras, apesar das dúvidas; o MP/SP
disse (i) que em 2009-10 não se falava de corrupção da Petrobras, (ii) que o
objeto de discussão era o pagamento de uma cota-parte do imóvel por Lula/Marisa
e (iii) que era impossível presumir envolvimento com corrupção da Petrobras.
Mas o STF resolveu o conflito em favor do MPF, jogando o caso Lula no colo do
Juiz Moro. Agora, segundo The Intercept, as conversas secretas
demonstram que os membros da força tarefa blefaram: horas
antes da Denúncia, não tinham certeza da ligação do imóvel com a Petrobras.
A matéria de O
Globo e a felicidade de Dallagnol
Logo depois (10 de dezembro de 2016),
com a descoberta da reportagem “Caso Bancoop: tríplex do casal Lula
está atrasado”, o coordenador Dallagnol viveu momento de intensa vibração
ao ler o item 191 da Denúncia, que descrevia a reportagem, dizendo aos colegas
da força tarefa, aliviado dos receios confessados: “Tesão
demais essa matéria do O Globo. Vou dar um beijo em quem de Vcs achou isso.” Após
perguntar sobre a fonte da matéria e sobre a hipótese de ouvir a
repórter (Tatiana Farah), Dallagnol raciocina: “Porque, se ele já era
dono, em 2010, do Tríplex ...” Excitado, o Coordenador da força
tarefa devaneia imaginando balões ao redor do balão
central com a imagem de Lula, o que chama de evidências ao
redor da hipótese de que ele era o dono etc., antecipando o Power
point da Denúncia.
A reflexão de The Intercept,
que coteja os dados da reportagem com os dados da Denúncia e da Sentença, é
mortal: primeiro, porque (i) a Denúncia considera a matéria como prova de
que o tríplex era propriedade de Lula, e porque (ii) a Sentença diz
que a matéria em questão é bastante relevante do ponto de vista
probatório; segundo, porque indica duas contradições entre os dados da
reportagem e os dados da Denúncia e da Sentença. O sentimento de alegria de
Dallagnol com a reportagem foi tão intenso - queria dar um beijo no
responsável pelo achado - que parece ter cegado o coordenador para as
contradições da reportagem com aqueles atos processuais.
Primeira contradição: a matéria
atribui a Lula a propriedade de um tríplex, apresentando como prova a
declaração de Lula à justiça eleitoral na candidatura à reeleição, falando
de “participação cooperativa habitacional em apartamento
em construção no Guarujá-SP,Maio 2005 - R$47.695,38 já pagos - ou
seja, sabendo-se que a cota poderia ser usada para qualquer
apartamento e que a defesa de Lula sempre falou de unidade simples,
a contradição reside em verificar que nenhum tríplex aparece
entre os bens de Lula.
Segunda contradição: a matéria
de O Globo atribui a Lula a propriedade do Tríplex,
situada na Torre B, prédio dos fundos do Condomínio, esclarecendo que uma “2ª
Torre (a torre A), se construída como informa a planta do empreendimento,
lançado no início dos anos 2000, pode acabar com parte da alegria de Lula: o
prédio ficará na frente do imóvel do presidente, atrapalhando a vista para o
mar do Guarujá”, diz a reportagem. Logo, a força tarefa usou
a reportagem como prova de que o tríplex era propriedade de
Lula, mas a reportagem atribui a Lula um imóvel da Torre B (e não da Torre A),
enquanto a Denúncia atribui a Lula um imóvel da Torre A (e não da Torre B),
cuja construção tiraria a vista para o mar do imóvel de Lula.
O disparate não pode ser maior: a Denúncia atribui a Lula a propriedade de um
imóvel da Torre A, fundado em reportagem de O Globo que
atribui a Lula a propriedade de um imóvel da Torre B; igualmente, a sentença
atribui a Lula a propriedade de um tríplex situado na Torre A,
fundado em reportagem que atribui a Lula a propriedade de imóvel da Torre B.
Por fim, outra dúvida suscitada
por The Intercept: a reportagem atribui a Lula a propriedade de
um tríplex no prédio A, com vistas para o mar; a
assessoria da Presidência, em resposta à repórter, diz que Lula tinha
um imóvel no local. Se o e-mail da repórter de O Globo foi
inutilizado e não existe cópia do e-mail da assessoria de Lula, então não se
pode saber se a pergunta era sobre um imóvel ou sobre um tríplex,
assim como a assessoria de Lula pode ter tomado uma coisa por outra. E se a
localização do imóvel na Torre A ou na Torre B pode ser, eventualmente,
irrelevante, é certo que o valor de prova da reportagem seria, no mínimo,
duvidoso, não obstante usada como argumento para acusar e condenar Lula.
As provas indiretas
e o discurso encobridor da acusação
A tormenta da dúvida continua na
consciência de Dallagnol, que confessa aos Filhos de Januário 1 alguns
problemas da acusação:
A opinião pública é
decisiva e é um caso construído com prova indireta e palavra de colaboradores
contra um ícone que passou incólume pelo mensalão.
O coordenador da força
tarefa conhece a fragilidade da prova, definida como prova
indireta, e sabe que a palavra de colaboradores vale tanto
quanto o impulso de sobrevivência de quem precisa salvar a própria pele e, por
causa disso, Dallagnol considera decisiva a opinião pública.
Em entrevista coletiva o Power
point de Dallagnol mostra a primeira Denúncia da Operação Lava
Jato contra Lula, cuja ideia central é assim resumida: o tríplex de
Guarujá, reformado pela OAS, foi doado a Lula como propina pelos contratos da
empreiteira com a Petrobras, configurando os crimes de corrupção passiva e de
lavagem de dinheiro.
Dois dias depois, criticado pela
opinião pública pela fragilidade da Denúncia, Dallagnol desabafa com Moro:
A denúncia é
baseada em muita prova indireta de autoria, mas não caberia dizer isso na
denúncia e na comunicação evitamos esse ponto.
A fragilidade da Denúncia - a prova
indireta de autoria - pode ser confessada para um aliado como o Juiz
Moro, mas é uma confissão impensável para qualquer outro Juiz, por causa da
inevitável rejeição da Denúncia por confessados indícios insuficientes
de autoria; essa fragilidade da Denuncia também não caberia,
como diz o coordenador, na comunicação ao público, uma decisão
pessoal de Dallagnol que manda às favas o dever de lealdade funcional e pouco
se lixa para o dever de verdade processual do Ministério Público. É o começo de
um vale-tudo processual contra Lula, tramado nos conchavos internos da Operação
Lava Jato pela concertada ação ilegal de Dallagnol e Juiz Moro.
Juarez Cirino dos Santos é professor de Direito Penal da UFPR, presidente do Instituto de
Criminologia e Política Criminal - ICPC e advogado criminal
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