O Brasil de Fato falou com especialistas militares, analistas políticos
e jornalistas que cobriram o ataque de Guaidó
Por Fania Rodrigues
No último dia 30 de
abril de 2019, a oposição venezuelana, liderada pelo deputado Juan Guaidó, e o
dirigente opositor Leopoldo López, líder do partido Voluntad Popular (Vontade
Popular), colocou em prática o que eles chamaram de “Operação Liberdade”. Tratava-se
de um golpe de Estado que visava a derrubada do presidente Nicolás Maduro pela
via militar. O cenário do conflito foi o anel viário Distribuidor Altamira,
importante artéria da capital, próximo à base aérea militar La Carlota, na zona
leste de Caracas.
O dia não havia
amanhecido completamente quando Guaidó transmitiu uma mensagem em vídeo pelas
redes sociais, fazendo um chamado aos militares venezuelanos, para que se
levantassem contra o governo. O elemento surpresa era Leopoldo López, segundo a
jornalista espanhola, Esther Yáñez, correspondente internacional há mais de
dois anos na Venezuela. O político foi condenado por delitos cometidos nos
protestos violentos de 2014 e estava em prisão domiciliar. “A grande surpresa
foi ver Leopoldo López. Foi isso que me fez pensar que algo grande iria
acontecer. Já aí meu coração começou a palpitar”, relembra a correspondente dos
canais Tele 5 e Tele 4, da Espanha.
A informação, segundo
Yañez, chegava a conta-gotas aos jornalistas, subindo a tensão aos poucos. O primeiro
alerta veio cedo. “Despertei com uma mensagem enviada às 4h30 da manhã, a um
grupo de Whatsapp de jornalista nacionais e internacionais, criado pelo
assessor de comunicação de Juan Guaidó. A mensagem dizia: “Atenção, informação
em pleno acontecimento”.
A partir desse
momento as versões contadas variam de acordo com a ideologia de cada meio de
comunicação e de sua linha editorial. Foram muitos aqueles que omitiram
informações, tantos outros que manipularam e alguns tantos que mentiram. Esther
ficou famosa nas redes sociais, com vídeos que viralizaram, justamente por
dizer a verdade e mostrar o que outros meios estrangeiros não estavam contando,
inclusive colocando sua vida em risco.
Nas primeiras horas,
pairava a dúvida se os opositores estavam dentro ou fora da base aérea. Em sua
mensagem difundida nas redes sociais, Guaidó dizia: “Estamos em La Carlota”,
abrindo espaço para a dúvida. Além disso, canais internacionais de notícias
difundiam informações que não deixavam clara a situação. Leopoldo López, que
por sua vez, publicava nas redes sociais textos em que dizia, entre outras
coisas, “estou em La Carlota”, com uma foto sua, cercado de militares.
Foi a repórter do
canal internacional Telesur, Madelein García, que divulgou a primeira
informação e vídeo de dentro da base aérea La Carlota mostrando que estava sob
controle de oficiais leais ao presidente Nicolás Maduro e que López e Guaidó na
verdade estavam em uma ponte em frente a base, no Distribuidor Altamira.
“Pedi autorização
para entrar na base aérea La Carlota, porque a gente não sabia o que estava
acontecendo dentro da base. Os opositores diziam que La Carlota estava tomada.
E um canal dos EUA estava transmitindo imagens de uma câmera que parecia estar
dentro da base área e dizia que estava tomada. Essa era a matriz de opinião que
os meios estavam construindo”, explica a repórter. E conta o viu lá dentro.
“Quando entrei vi que a situação era de normalidade. O comandante me disse que
estavam tentando controlar a situação e evitar que os opositores entrassem”.
Nesse momento, do
lado de fora, já era possível ver que os militares que acompanhavam os líderes
opositores não passavam de 40 soldados e oficiais de média e baixa patente. A
deserção não foi massiva como Guaidó esperava.
O mestre em Filosofia
de Guerra, Jorge Ladeira, analisa quem eram os militares que apoiaram os
opositores. “Quando vemos a imagem de Leopoldo López junto ao Guaidó no anel
viário de Altamira, observamos que os acompanhavam um coronel, um tenente,
alguns sargentos. Não são patentes militares altas. Não havia ninguém do alto
mando militar que pudesse ter acesso às unidades militares grandes, que
garantisse uma mobilização de destacamentos, pelotões, batalhões e que pudesse
forçar um golpe de Estado”.
Além dos militares
que acompanhavam López e Guaido, alguns soldados foram levados para a área de
conflito, sob falsos pretexto, segundo o general Alexis Rodríguez Cabello.
Outro grupo de
militares, composto principalmente por mulheres, quando se deu conta que foi
enganado, roubou um ônibus e dirigiu até a Casa Altamira, um dos prédios da
chancelaria venezuelana, para denunciar o ocorrido. Assim também aconteceu com
os oito tanques de guerra que os militares desertores haviam roubado. Os
militares leais a Maduro levados a Altamira de maneira enganosa, foram buscar
um por um dos carros blindados e os devolveram a seus comandos.
O momento mais tenso
do dia ocorreu por volta das 10h30 da manhã quando coquetéis molotov atingiram
um tanque de guerra, que estava dentro da base aérea, que ficou completamente
destruído. Nesse momento uma rajada de tiros, disparados por opositores,
atingiu também as instalações da base aérea.
Durante os ataques
oito militares leais a Maduro foram atingidos; um deles, um coronel, ficou
gravemente ferido. O tiro que veio do alto atinge seu pescoço e saiu pela
clavícula, diz a repórter Madelein Garcia. Os disparos, segundo a jornalista,
partiram de franco-atiradores. A informação também foi confirmada pelo analista
político Amauri Chamorro, que também trabalha como consultor e assessor da
Presidência da República da Venezuela.
Ao todo, na parede do
edifício da Guarda Nacional Bolivariana, dentro da base militar, foram contadas
mais de 20 disparos, de armas curtas e longas.
O governo venezuelano
denunciou que algumas das armas utilizadas por militares desertores, que
acompanharam Guaidó e Leopoldo López no Distribuidor Altamira, eram fuzis
AR-15, fabricados nos Estados Unidos, que não são utilizados pelo exército
venezuelano. Há a suspeita de que o armamento faça parte de uma apreensão de
fevereiro deste ano, feita no Aeroporto Internacional Arturo Michelena, na
cidade venezuelana de Valência, e que ficou sob a custódia do Serviço
Bolivariano de Inteligência Nacional (Sebin). Alguns militares do Sebin,
incluindo o diretor-geral, estavam entre os desertores que apoiavam o golpe e
libertaram Leopoldo López.
Enquanto isso
acontecia na zona leste, do outro lado da cidade, no centro da capital, a
população se concentrava ao redor do palácio presidencial Miraflores. “Esse dia
recebemos um alerta muito cedo, pelos celulares. Como somos um povo organizado
estamos sempre atentos. Recebemos a orientação de ir para Miraflores porque
havia uma tentativa de golpe de Estado”, relatou o primeiro-tenente, José
Rodríguez Nascimento, comandante do batalhão da Brigada Territorial de Las
Vegas.
O militar conta como
as Brigadas Bolivarianas se organizaram rapidamente para chegar ao palácio
presidencial. “O primeiro grupo chegou 5 minutos depois do alerta. Um segundo
grupo chegou 10 minutos depois e um terceiro 15 minutos. Os outros foram
chegando aos poucos. Em 40 minutos o palácio estava cercado pela população. Em
uma hora já tinhamos entre 500 e 800 pessoas ao redor de Miraflores”, lembra o
tenente.
Os opositores nunca
chegaram na zona do Palácio, segundo o comandante Nascimentos. “Não chegaram
porque a população automaticamente resguardou o Miraflores, organizadas nas
Brigadas Bolivarianas, compostas por cidadão comuns com treinamento militar,
que são acionados em situações irregulares”, explica.
“Uma coisa que nenhum
meio de comunicação estrangeiro mostrou foi que 100 mil pessoas cercaram o
palácio presidencial de Miraflores para mostrar seu apoio ao presidente Nicolás
Maduro.O número de pessoas em Miraflores era 10 vezes maior que a quantidade de
gente da Praça Altamira junto a Juan Guaidó”, aponta Chamorro.
Quem planejou o
golpe?
Guidó foi quem
convocou o levante, mas nos bastidores quem comandava toda a operação era o
político Leopoldo López, libertado da prisão domiciliar na madrugada daquele
dia por militares desertores. Uma das câmeras de jornalistas que acompanhavam
os eventos capta o momento em López ordena o fechamento da autopista Francisco
Fajardo, via arterial de Caracas, ponto de concentração de opositores.
Deputados opositores confirmam, com a condição de não serem identificados: era
Leopoldo quem comandava tudo.
Além disso, dois
oficiais tiveram papel importante no planejamento da tentativa de golpe. Um
deles era o tenente-coronel comandante da Guarda Nacional Bolivariana (GNB)
Ilich Sánchez Farias, que até aquele momento era o responsável pela segurança
interna de todos os poderes públicos do Estado, entre eles a Assembleia
Nacional, o Tribunal Supremo de Justiça, o Conselho Nacional Eleitoral, do
Ministério Público. E o outro era o general Manuel Ricardo Cristopher Figuera,
ex-diretor do Serviço Bolivariano de Inteligência Nacional (Sebin), que havia
sido demitido no dia anterior.
O objetivo principal
do levante era atacar a base aérea militar La Carlota. “Os líderes opositores
esperavam que houvesse uma reação violenta do governo venezuelano e das forças
militares, para criar a partir disso um factóide sobre mortos, assassinatos,
massacres, bombardeios e fuzilamentos”, avalia o analista político Amauri
Chamorro.
Em sua opinião um
contra-ataque das forças armadas poderia justificar uma intervenção militar dos
EUA.“O objetivo era realmente provocar as Forças Armadas para saírem às ruas e
gerar assassinatos. Esperavam uma resistência armada, o que seria lógico, pois
havia um ataque a uma base militar. Isso justificaria, diante da comunidade
internacional, uma invasão militar estrangeira”.
A jornalista da
Telesur também levanta essa hipótese. “O que buscavam era o enfrentamento entre
militares. Mas, do lado de dentro da Carlota nunca houve disparos com armas de
fogo. Apenas bombas lacrimogêneas, para dispersar as pessoas. A ordem do
presidente Maduro, me disse um dos comandantes, era esgotar a via do diálogo e
do uso progressivo da força utilizada para o controle da ordem pública e não
utilizar as armas de guerra contra a população civil”.
“Maduro, muito
inteligentemente, ordenou que o exército não reagisse, sob nenhum pretexto.
Eles deveriam proteger a base, para não ser invadida, porém não tinham
autorização para atirar”, explica Amauri Chamorro.
Um grupo de
opositores civis conseguiu entrar na base militar depois de derrubar parte da
grande que cerca a base, segundo Madein. “Foi um momento muito tenso, sobretudo
quando entraram e começaram a queimar um comando de aviação. Os militares foram
falar com eles, pediram que se afastassem. “Vocês já fizeram o que queriam
fazer então agora vão embora. Vocês têm que sair porque essa é uma zona de
segurança”, teria dito um dos oficiais, segundo a jornalista. O diálogo
prevaleceu. “Em qualquer parte do mundo teriam disparado contra os invasores”,
ressalta.
Os opositores, enfim,
se retiraram de dentro da base. Já era meio dia e o golpe havia fracassado. Os
enfrentamentos com pedras, coquetel molotov e bombas de efeito moral
continuaram, mas o cenário já havia se convertido em problema de ordem pública.
“Não havia muita gente, o povo não saiu às ruas. Eram os mesmos de sempre”, diz
Madelien García.
O que deu errado nos
planos opositores?
Os líderes
opositores, que haviam começado o dia com palavras de ordem e gestos
imponentes, foram mudando o semblante com o passar das horas. Quando o ponteiro
do relógio se aproximava do meio-dia, os rostos foram ganhando ar de
preocupação, nervosismo e irritação. Algo havia falhado. Os gestos de Leopoldo
López indicava que não havia chegado o que eles tanto esperavam.
“Depois ficamos
sabendo que quem lhes falhou foi o general Manuel Ricardo Cristopher Figuera,
ex-diretor do Sebin, que organizou tudo e depois foi embora. A informação que
temos é que ele esteve em Miraflores um dia antes, falando com o presidente.
Recebeu ordens, cumpriu algumas delas. Às 6h da manhã o presidente teve uma
última chamada com ele. Depois disso desapareceu. Ele deixou a oposição na
mão”, diz Garcia, que tem contato direto com a alta cúpula do governo e dos
militares.
A informação
extraoficial é de que o então diretor do Sebin, Cristopher Figuera convenceu a
oposição de que tinha o compromisso de alguns comandos militares, que trairiam
o presidente Maduro e passariam para o lado opositor. Com isso, haveria
condições de haver um golpe de Estado.
Para o analista
político Amauri Chamorro tratou-se de uma operação meticulosamente planejada.
“A contra-inteligência do governo Maduro confundiu a oposição venezuelana, o
governo dos Estados Unidos e os órgãos de inteligência estadunidenses, fazendo
parecer que a unidade do exército e o poder civil havia sido rompida, que um
conjunto de generais tinha se levantado contra o presidente Maduro”, afirma
Chamorro.
Um especialista
militar romeno, o ex-comandante Valentin Vasilescu, publicou um artigo no site
Rede Voltaire, que explica como “um pequeno serviço de contra-espionagem
venezuelano, a Sebin (Serviço Bolivariano de Inteligência Nacional) conseguiu
derrotar a CIA”. O especialista apresenta dados técnicos precisos, sobre como
funciona a espionagem dos EUA, Rússia e Venezuela. O Brasil de Fato procurou
governo venezuelano para checar os dados e recebeu a informação de que “maioria
das informações divulgadas pelo especialista eram verdadeiras”.
O ex-comandante da
Romênia garante que oficiais do Sebin foram infiltrados em grupos opositores e
na imprensa financiada pelos Estados Unidos. Houve uma operação com a seleção e
a publicação das notícias ligadas à evolução política na Venezuela. Uma vez lá,
infiltraram informações falsas na imprensa, como se fossem “vazamentos”,
direcionados à CIA. Entre essas informações esta uma sobre a intenção de certos
generais da primeira força-tarefa venezuelana em trair o presidente Nicolás
Maduro e libertar os opositores políticos presos.
“A fim de ganhar a
confiança dos agentes da CIA, os membros do Sebin até organizaram reuniões de
conspiração com os generais venezuelanos, sob total controle da inteligência da
contra-espionagem militar”, publicou Vasilescu. E disse ainda que Juan Guaidó
receberia “pelotão com mais de mil soldados”, para tomar a base aérea La
Carlota.
“Depois disso, a Casa
Branca deu luz verde para a ação de 30 de Abril que se tornou o maior fracasso
da CIA no decurso das últimas décadas. A Venezuela provou que lutar com
patriotismo e profissionalismo, mesmo para um país sul-americano sob embargo,
pode quebrar os planos da CIA”, destaca o especialista militar.
Os militares
venezuelanos não se identificam com a oposição
O sociólogo e mestre
em Filosofia de Guerra, pela Universidade Militar Nacional Bolivariana, Jorge
Ladeira, afirma que uma das razões pelas quais a oposição não conseguiu ao
longo dos últimos 20 anos ter apoio dos militares é a luta de classes que
permeia toda a política venezuelana.
A Força Armada
Nacional Bolivariana tem uma composição de classe social diferente de outros
países da América Latina. No Brasil e na Argentina, por exemplo, a composição
das altas patentes das forças armadas é conformada pela elite, que ao longo dos
anos foram acumulando condições financeiras e influência política.
“No caso da
Venezuela, existe uma geração de oficiais que se incorporaram depois de 1999,
no contexto da Revolução Bolivariana, que são de extratos sociais baixos e que
passaram por um processo de formação do pensamento bolivariano, o projeto de
integração latino-americano, da autodeterminação dos povos, da soberania e do
novo conceito de defesa e desenvolvimento da nação”, destaca o sociólogo.
Por outro lado, a
oposição venezuelana é a expressão de classe econômica que perdeu espaço no
poder para o projeto nacional bolivariano. “Essa é uma classe econômica
dominante que não exerce influência sobre essa nova composição militar, porque
no seu momento de controle político do Estado usava os estamentos militares
como uma relação utilitária”, ressalta Jorge Ladera. “Ademais, o discurso da
oposição venezuelana é entreguista, tem como princípio a abertura do país para
a principal potência mundial”, conclui Ladera.
Edição: Pedro Ribeiro
Nogueira
Líder do partido
Vonluntad Popular, Leopoldo López comandou operação de golpe contra Maduro /
Foto: Hispano Post
Nenhum comentário:
Postar um comentário