Por Daniel Fabre
LAVRA PALAVRA
Vivemos um rearranjo da luta de classes
no país e uma tentativa de alinhamento do Brasil em um ciclo de acumulação
capitalista mundial.
O período que se iniciou com o governo Bolsonaro é o fim
do interlúdio histórico que foram os anos 2016-2018, na sequência do golpe
judicial-parlamentar contra a Presidência de Dilma Rousseff. Primeiro com a
farsa do impeachment, segundo com a tragédia econômica e eleitoral.
Um novo
pacto entre o empresariado e os militares se desenha. No Brasil, o século XX
está, enfim, morto.
Os jornais noticiam que no atual
governo cerca de cem militares compõem a alta cúpula do executivo em Brasília,
sem contar os demais espalhados em cargos estaduais e municipais. No primeiro
escalão do governo federal são cerca de um terço. Uma inteira geração do
oficialato que nunca teve experiência na administração pública agora ocupa
cargos decisivos na operação da institucionalidade e de seu jogo com a
economia. Pesquisas de 2014-2015 já anunciavam que o exército era a segunda
instituição que os brasileiros depositam mais confiança, seguindo a Igreja em
primeiro lugar. No entanto, desde o primeiro governo civil de José Sarney, não
havia militares no núcleo duro do governo central. Seriam estes trinta anos
apenas um entreatos histórico?
O Regime de 1964
O fim do regime militar coincidiu sem
coincidência alguma com o fim de um grande ciclo econômico mundial, aquele
gerado no pós-guerra do ocidente sob o imperialismo estadunidense. Um cenário
marcado pela luta de manutenção do desenvolvimentismo e da industrialização dos
países periféricos do capitalismo global, que herdavam do entre guerras a
oportunidade, que nos parece cada vez mais assombrosa, de inverter o papel
subalterno da economia periférica por meio da substituição de importações.
Em particular no Brasil, a partir do
golpe militar de 1964, formou-se uma grande aliança entre os militares que
assaltaram o estado e amplos setores empresariais do capital nacional e
internacional, voltada a aumentar a taxa geral de lucros pela manutenção de
algum desenvolvimentismo e pela espoliação das classes trabalhadoras, sob a
estabilidade política do autoritarismo. O fim da década de sessenta já
anunciava o fim dos “anos dourados” do capitalismo fordista, mas foi somente
anos depois, no fim dos oitenta em que foi possível ao capitalismo global
iniciar um novo ciclo de acumulação, baseado na derrocada do bloco socialista e
em sua espoliação, nas novas tecnologias e seus usos econômicos e no
estabelecimento de uma nova pax política e ideológica mundial, sonhada por
gerações de burgueses, tão saudosos do século XIX, quando imperou no globo o
liberalismo britânico.
O pacto empresarial-militar consumado
após 1964 no Brasil ocorreu em um contexto de fim de um ciclo de acumulação
mundial do capitalismo e em especial da América Latina. A grandiosa
transformação da economia vivida desde os anos trinta encontrava óbices ao seu
prosseguimento em virtude do fim da guerra, da reconstrução europeia, da
retomada de uma economia de paz e do novo modelo de imperialismo estadunidense,
baseado na presença massiva de multinacionais nas economias do resto do globo.
Em um cenário em que o trabalhismo varguista e o crescimento da classe média
pressionavam os ganhos empresariais e alimentavam agitações políticas, viu-se
necessário à burguesia nacional e interessante ao grande capital internacional,
que o estado fosse controlado diretamente por um pacto empresarial-militar.
Por
essa mesma razão, o que se viu não foi uma ruptura prematura com o ciclo então
vigente, mas uma tentativa autoritária de retomada dos ganhos do empresariado,
da aristocracia alijada do poder pelo varguismo e dos interesses imperialistas
no país. A fisionomia econômica permaneceu, metade do PIB brasileiro no fim dos
anos oitenta ainda era oriundo da indústria.
A Terceira República
O que se viu a partir daí, a despeito
da tentativa neodesenvolvimentista dos anos 2000, foi o lento e silencioso
desmantelamento da indústria nacional. Como já mencionado, o início do período
institucionalmente democrático coincidiu sem coincidências com um novo regime
de acumulação mundial, amparado por relações multilaterais globais, onde as
matérias primas brasileiras, em especial o ferro, a soja e o gado, simbolizaram
a paulatina concretização do novo papel do Brasil na economia mundial,
condenado a não ser mais do que uma pedreira e uma fazenda tropicais, como
ocorrido por toda sua história com exceção do século XX.
Mesmo sob o lulismo a
indústria paulatinamente diminuiu e perdeu importância na economia nacional
frente ao crescimento vertiginoso do ‘agrobusiness’ – esta impressionante
retomada, meio século depois, da primazia aristocrática, do poder terratenente
no Brasil -, sob o impulso da mecanização e da modernização do campo. Ainda
assim, houve estabilidade política e ideológica enquanto foi possível ao
estado, em especial o lulista, manter a espoliação das conquistas seculares das
classes trabalhadoras (como a previdência social, as leis do trabalho, os
serviços públicos) fonte de acumulação de capital característica do
neoliberalismo ainda vigente, e ao mesmo tempo, políticas de distribuição de
renda, amplamente apoiadas nos tributos da União oriundos das crescentes
exportações de commodities.
Com a crise do regime global de acumulação em 2008,
a crise do subprime, lentamente no caso brasileiro, viu-se o esgotamento do
pacto de classes lulista que havia garantido um grande crescimento da economia
durante pouco mais de uma década. A partir de 2013 a crise foi deflagrada no
terreno político, mas ela está, antes de tudo, determinada por dados
fundamentais da história e da economia.
Em primeiro lugar, está a queda
substancial de exportações de matérias-primas, influenciada pelo
“desaquecimento” geral da economia mundial no pós-crise de 2008, que,
obviamente, gerou o decrescimento do consumo mundial e da produção industrial
oriental, em especial a chinesa, e, consequentemente, de sua demanda por
matérias primas, principais mercadorias responsáveis por irrigar os cofres do
estado brasileiro no período anterior. O estado, por sua vez, mantinha um
mercado interno “aquecido”, por meio de políticas de distribuição de renda,
como o demonizado bolsa-família, responsáveis por alimentar um regime interno de
acumulação de capital, sobretudo no setor de serviços e na agonizante indústria
nacional de baixo valor agregado, que contribuiu com o senso de modernização
que marcou a época.
Concomitante à crise política, as
receitas oriundas do petróleo também sofreram com a queda induzida de seu preço
pelos Estados Unidos em aliança com a Arábia Saudita, almejando alavancar sua
retomada econômica e ao mesmo tempo atacar regimes como os do Irã, Rússia,
Venezuela e talvez o próprio Brasil (lembre-se do episódio divulgado por Julian
Assange sobre a espionagem da Petrobras e do gabinete de Dilma Rousseff), onde
há pouco se havia sedimentado um avançado regime de exploração do pré-sal, que
destinava imensa parte dos ganhos à educação e saúde. É verdade que a
tecnologia de extração de petróleo do xisto, denominada fracking, também
influenciou o preço do petróleo, ainda que não tanto quanto o imenso aporte
saudita ao mercado global por volta de 2010, sem nenhuma justifica econômica
plausível, derrubando seu preço para cerca de quarenta dólares, algo
impressionante: menos da metade do preço praticado na primeira década do
milênio.
Além disso, o declínio industrial
brasileiro – anestesiado durante duas décadas pelo preciso arranjo de classes
lulista em função da economia mundial – tão vertiginoso quanto seu surgimento,
foi crescentemente aparecendo na situação social como um sintoma do mal-estar
na vida das grandes cidades. A vida citadina brasileira, criada pela indústria
e para a indústria, viu sua estrutura e equipamentos urbanos serem abandonados,
bem como seu poder de investimento. Todo o imenso contingente populacional que
desde os anos trinta havia migrado para a vida urbana do país, atendendo às
demandas industriais por força de trabalho e por seu barateamento, tornou-se crescentemente
“órfão” de emprego e renda, e por consequência, todo o estado social gestado
sobre esta relação econômica. A esperança de que as cidades pudessem
transformar a vida social brasileira – tropicano-periférica, herdeira da
escravidão tardia – tornando camponeses, marginalizados, ex-escravos e
desgarrados em proletários assalariados de um mundo desenvolvido, durou pouco
afinal.
Com o declínio da indústria, este
imenso contingente populacional urbanizado vive agora ao puro sabor das
sucessivas ondas neoliberais. As cidades e a burguesia nacional não necessitam
e não são capazes de lidar com o contingente populacional urbano, mas tampouco
a aristocracia modernizada rural. Esta população, que havia constituído as
classes médias do país, viu sua qualidade de vida decair brutalmente. Não
apenas o desemprego aumentou, mas também sua precariedade. A falta de emprego e
sua precariedade não apenas pressionam a vida das classes médias, mas também os
recursos estatais, cujos impostos incidem sobre a atividade econômica, em
especial para o estado social, que é assentado sobre o emprego formal,
celetista. As cidades foram, então, paulatinamente perdendo seu poder de
investimento e de transformação urbana, aliando-se à precarização das condições
de emprego e renda, crucialmente no setor de serviços, deteriorando em geral a
vida nas grandes cidades brasileiras. Não foi outro o estopim das jornadas de
2013, oriundas das manifestações pela manutenção do preço do transporte
público.
Junho marcou também o declínio relativo
das tradicionais organizações políticas, especialmente as legitimadas com o
processo de redemocratização durante os anos oitenta. Não apenas o arranjo
político que representava os setores conservadores e reacionários foi afetado –
ao redor do PSDB –, mas sobretudo o arranjo político das organizações políticas
progressistas e trabalhistas, como movimentos sociais, sindicatos e partidos –
ao redor do PT –, que durante mais de três décadas desfrutaram de legalidade e
legitimidade não apenas política, mas jurídica e estatal, especialmente durante
o período lulista. As organizações de esquerda, perdidas nos labirintos do
estado, divididas em pautas isoladas e identitárias, foram incapazes de
representar o que se anunciava. O pacto político oriundo da grande demonstração
popular das diretas já, enfim, caducava.
O Interlúdio 2016-2018
O golpe de estado contra a presidência
de Dilma Rousseff marca a reapresentação do processo que as jornadas de junho
de 2013 haviam deflagrado. O movimento vitorioso de genuíno engajamento
político foi habilmente manobrado por amplos e distintos setores burgueses,
tornando-se o ventríloquo da insurgência da elite e de setores das camadas
altas da classe média contra o pacto de classes lulista. A conjunção material
da situação histórico-econômica do país, sobretudo no centro imperial
sudestino, tornou possível uma ofensiva em busca da retomada das decrescentes
taxas de lucro. A efervescência da política de rua, o bloqueio institucional
estabelecido pelo Congresso Nacional após 2014, imortalizado na figura de
Eduardo Cunha, o deterioro econômico, bem como a já mencionada pressão sobre as
contas e políticas públicas do estado lulista, concretizou aos setores
burgueses a necessária correlação de forças para a derrubada do governo eleito.
Derrubada esta, ocorrida especificamente sob o manto da ideologia jurídica e da
legalidade, orquestrada brilhantemente pelo oligopólio midiático.
Os setores burgueses, uma vez apossados
do estado – este, que desde a instauração da república nunca deixou de ter a
própria forma da burguesia – trataram de levar a cabo uma nova onda neoliberal,
espoliando uma vez mais o que restava do estado social construído por três ou
quatro gerações das classes trabalhadoras brasileiras ao longo do grandioso
século XX. A reforma liberal trabalhista de 2017, a nova lei do petróleo, que
abdicou de praticamente toda a receita do pré-sal prevista pelo supracitado
marco legal de exploração aprovado pelo lulismo, as sucessivas reformas
previdenciárias, a privatização das restantes empresas públicas, o
contingenciamento orçamentário, são exemplos dos despojos conquistados no
interlúdio entre o processo de deposição de Dilma Rousseff e a eleição de Jair
Bolsonaro. Mas a vitória foi se dando também no campo ideológico, na visão
geral de mundo da população, em seu balanço moral e imaginativo. Viu-se o
desenvolvimento do revisionismo histórico acerca da ditadura militar, o
surgimento de destacamentos fascistas de fato mobilizados, os movimentos de
direita, a ascensão evangélica, enfim, as bases da eleição de Bolsonaro.
A toupeira havia cavado por demasiado
tempo o subsolo. A fisionomia da política brasileira fora alterada,
acompanhando a culminância dos processos econômicos e históricos do último
período. Se o século XX na periferia sul-americana foi marcado pelo sonho do
desenvolvimento, da modernização, da industrialização, da soberania nacional,
da ação do estado para educar, promover a saúde, diminuir as desigualdades,
incluir as minorias, estabilizar a economia, então o século XX está, enfim,
morto. A destruição direta do projeto nacional de desenvolvimento deflagrada
por Bolsonaro, reapresenta na situação atual o que o golpe contra Dilma
Rousseff havia primeiro apresentado. Fim não apenas do lulismo, mas do que
responde pelo próprio nome de século XX no Brasil.
Ainda no interlúdio de 2016-2018,
quanto ao cenário internacional, viu-se a ascensão dos partidos e governos de
extrema-direita em todo o mundo. Não apenas a tecnologia, em especial, a
experiência massificada do acesso à internet por smartphones, mas também a
continuidade da estagnação do mercado mundial após 2008, alterou as regras do
jogo político e possibilitou novas formas de organização, as quais foram
majoritariamente capturadas e financiadas por obscuros movimentos de extrema
direita global. Lembremos o nome de Steve Bannon, que, mais do que um marqueteiro,
é também um próprio ideólogo e conselheiro dos governos de extrema direita
eleitos ao redor do mundo nesse período, na sequência de Donald Trump nos
Estados Unidos.
Este movimento global altamente reacionário é certamente obra
de setores da alta burguesia ocidental, mas sua vitória é também fruto da
continuidade e agravamento da crise econômica em alguns países e da estagnação
do mercado mundial, provavelmente, por responsabilidade da própria burguesia e
do estado norte-americano, interessados tão somente em recuperar a hegemonia
global contestada após 2008. Os episódios da guerra comercial entre Estados
Unidos e China a partir de 2018, com as mais altas sanções econômicas
mutuamente aplicadas da história, é o sintoma da continuidade da estagnação do
mercado mundial e de seu possível agravamento.
Internamente, os instrumentos
construídos ou fortalecidos para o golpe de estado não cessaram sua ação,
gestada para a desestabilização política. Os meios midiáticos e as novas forças
conservadoras continuaram a impulsionar a mobilização política da população. O
governo de Temer, altamente rejeitado, não negou esforços para aprovar
políticas antipopulares, como a reforma trabalhista, o congelamento dos gastos
sociais por 20 anos, a venda da Embraer, reforma da previdência, etc. Estes
fatores foram responsáveis por manter no país o clima de instabilidade gerado a
partir da crise econômica e da deposição do governo eleito, instabilidade esta
tão sensível aos mercados especulativos internacionalizados e aos fluxos de
capital.
A possibilidade de retomada do projeto nacional anterior e a aposta
petista no lançamento do altamente rejeitado Lula, ainda tanto quanto amado,
levou o país ao clima político de prévio desmantelamento do tecido social visto
nas eleições de 2018, quando Jair Bolsonaro concretizou sua vitória, que não se
tratou, definitivamente, de uma simples vitória eleitoral, mas principalmente
de uma vitória política e ideológica sobre o balanço geral de valores da
sociedade. Parlamentar insignificante por quase trinta anos, Bolsonaro não foi
eleito apenas por encarnar o antipetismo e apresentar um projeto de
continuidade do desmantelamento do estado social, mas também por representar a
defesa e afirmação da identidade conservadora e reacionária, ferida pelas
recentes vitórias das formas majoritariamente identitárias de luta política da
esquerda.
Bases do Novo Pacto
A instabilidade do interlúdio histórico
de 2016-2018 foi o principal impulsor da, até então inacreditável, retomada das
forças militares na política institucional. Temer não apenas iniciou o processo
de nomeação de militares para cargos do alto escalação governamental, como
promoveu a inconstitucional e já fracassada intervenção militar na cidade do
Rio de Janeiro, inserindo os militares definitivamente de volta à vida pública
brasileira. Com a ascensão de Jair Bolsonaro, concretizou-se também a massiva
eleição de militares para diversos cargos públicos, do legislativo e executivo
de outras unidades federadas.
Entretanto, a grande coalizão de direita
que elegeu Bolsonaro em outubro de 2018, que se apresentava então de forma
monolítica, congregando setores religiosos reacionários de diversas classes,
militares, revisionistas, empresários, o capital internacional, a classe
política, funcionários públicos, dentre tantos outros setores, não tardou a
revelar suas já conhecidas fissuras e contradições. Empossado, o governo não
levou um mês a desatar uma primeira crise política, com o caso das candidaturas
laranjas do PSL e a queda fulminante do ex-ministro Bebiano (Diga-se de
passagem, nos áudios de whatsapp vazados de sua conversa com o presidente,
Bebiano apontou como os militares rejeitaram sua presença e de outros civis em
suas reuniões no palácio, denotando que formam um grupo a parte dentro do governo).
A verdade é que o burlesco cenário de um governo composto por uma família de
trato estúpido e paranoico, pela influência de um astrólogo de formação
duvidosa, e a participação de múltiplos setores empresariais, militares,
evangélicos, com visões de mundo e interesses conflitantes não pode muito
contribuir com a suposta estabilidade política e institucional necessária a
radicalidade das alterações legais e econômicas propostas.
A impossibilidade de promover as
prometidas reformas radicais do estado, principalmente a da previdência social,
que entrega a administração dos valores arrecadados e a poupança popular ao
mercado financeiro, foi paulatinamente solapando a euforia especulativa do
capital e das altas camadas da sociedade. Os episódios dantescos dos bolsonaros
nas redes sociais, as falas de seus ministros de estado, a guerra contra o
Congresso e a inabilidade administrativa e política, foram passo a passo
afetando a legitimidade do governo, que em menos de seis meses viu sua rejeição
beirar cinquenta por cento. As manifestações de maio contra o corte no
orçamento da educação foram uma imensa demonstração de reação aos rumos do
governo. Talvez, desde os anos oitenta e com o movimento das diretas não tenha
havido uma manifestação tão significativa por pautas razoavelmente
progressistas, foram às ruas mais de um milhão de pessoas em todas os estados
federados.
Os militares aparentemente nunca
estiveram totalmente alinhados com o núcleo bolsonarista, lembremos da crise
gerada pela perseguição desmedida do setor do astrólogo aos generais em maio de
2019. Estes passaram a demonstrar publicamente cada vez mais sua independência
e suposta imparcialidade em relação ao conjunto desvairado dos civis no
governo. O vice-presidente, Hamilton Mourão, que até agosto de 2018 falava em
acabar com o 13ª salário, ou em intervenção militar caso Lula fosse candidato,
por exemplo, em fevereiro de 2019 passou a ,sem cerimônias, defender o aborto
em alguns casos, recebeu no governo o sindicalismo (tão combatido pelo governo)
e passou a demonstrar à cada situação um pretenso equilíbrio e maturidade
política, que soam como música aos ouvidos de diversos setores da sociedade
diante da mediocridade do núcleo do governo.
Mourão tornou-se rapidamente um
hábil ventríloquo das necessidades das elites com o falso discurso conciliador
esperado dos gestores do capitalismo mundial, manifestando a cada falha de
Bolsonaro qual seria a linha correta, apontando que pode se converter em um
verdadeiro príncipe de Maquiavel, pairando sobre os incessantes conflitos de
classe. Não bastasse, notícias do primeiro semestre apontam que Mourão mantém
conexões diretas com amplos e poderosos setores empresariais (o Valor Econômico
notícia em março que Skaf o recebeu em sua mansão com “representantes dos 30 maiores
grupos empresariais do país).
O recrudescimento da crise no mercado
internacional com a nova rodada de sanções na guerra comercial entre EUA e
China, que pressiona a já anunciada recessão da economia brasileira no primeiro
semestre, somado à retomada da política de rua com face progressista, a
instabilidade oriunda da disputa entre o governo e o Congresso, dentre outros
fatores desagregadores, fortalecerá cada vez mais a possibilidade de um
impedimento ou de descrédito e falta de legitimidade do governo de Jair
Bolsonaro.
Ao manter sua independência mesmo ocupando parte do executivo, os
militares se apresentam cada vez mais dotados da unidade, autoridade e
legitimidade necessárias à implementação dessa tentativa de inserção do Brasil
no novo arranjo geopolítico mundial capitaneado pelo ocidente trumpista, que
almeja, ainda sem sucesso, a instauração de um novo ciclo de acumulação mundial
capitalista, novamente liderado pela economia estadunidense através da
consequente reorganização da divisão internacional do trabalho – como sinaliza
a tentativa de Trump de reindustrializar o país, com a taxação de produtos
industrializados orientais e mexicanos. Um ciclo não mais baseado em um arranjo
econômico mundial multilateral e livre-alfandegário, mas sim, protecionista e
bilateral, ao menos enquanto o estado norte-americano buscar a hegemonia
mundial contestada após 2008 e sua independência em face da economia chinesa.
No Brasil, delineia-se no horizonte a
silhueta de um novo pacto empresarial-militar. A espoliação do estado social
iniciada pelo capital com o golpe de 2016, que é parte causa da instabilidade
política e parte consequência da estagnação do mercado mundial – deixando as
altas camadas impossibilitadas de obter seu mais-valor pelo crescimento da
economia, senão pela espoliação das conquistas obreiras do século XX – não pode
continuar a se desenvolver sem estabilidade. As disputas públicas entre os
setores do governo (empresarial, capitaneado por Guedes, o
bolsonarista-olavista e o militar) contribuem com a instabilidade, mas também
demonstram que as reformas necessitam em alguma medida de um projeto político
autoritário. A cada ato desastroso do núcleo bolsonarista-olavista, condutor do
governo, o núcleo militar se apresenta como o único capaz de oferecê-lo.
Entretanto, as sinalizações parcimoniosas dos militares, especialmente de
Mourão, demonstram que é muito improvável que ocorra uma ditadura militar, como
muitos temem frente aos fantasmas do passado. O que parece mais possível do que
nunca é um governo militar institucional ou democraticamente eleito, ainda que
seja, mais uma vez, escolha da opção autoritária para a condução do país
através da forte turbulência que parece se avizinhar no horizonte do
capitalismo global.
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