Vilson Romero - Foto: Igor Sperotto |
“Um orçamento que movimenta mais de R$ 1 trilhão ao ano, se
considerarmos INSS, os Regimes Próprios de União, estados, DF e municípios,
mais o sistema dos militares, com certeza, é ambicionado pelas corporações
financeiras nacionais e estrangeiras”
Por Gilson Camargo –
EXTRA CLASSE
O projeto de reforma da Previdência – proposta de Emenda
Constitucional (PEC) 6/2019 –, que tramita na Câmara dos Deputados desde o início
de fevereiro, representa uma implosão do sistema previdenciário público e
solidário em vigor no país desde a década de 1920 e consolidada pela
Constituição de 1988.
Ao retirar do
contexto constitucional as garantias de proteção social, a reforma que o
presidente Jair Bolsonaro (PSL) e o ministro da economia Paulo Guedes tentam
aprovar a qualquer custo – com ameaças, chantagens e verbas – coloca os
trabalhadores sob uma insegurança jurídica sem precedentes, à mercê da
instabilidade política. E ao impor um sistema de capitalização que acaba com o
atual sistema tripartite e solidário, a proposta atende aos interesses do
sistema financeiro.
“Um orçamento que
movimenta mais de R$ 1 trilhão ao ano, se considerarmos INSS, os Regimes
Próprios de União, estados, DF e municípios, mais o sistema dos militares, com
certeza, é ambicionado pelas corporações financeiras nacionais e estrangeiras”,
avalia o jornalista e auditor fiscal aposentado Vilson Romero, da coordenação
da Frente Gaúcha em Defesa da Previdência.
Romero, que
participou do Sinpro/RS Debate que o Sindicato dos Professores promoveu neste
sábado, 30 de março, no Hotel Embaixador (Rua Jerônimo Coelho, 354), em Porto
Alegre, foi um dos proponentes do Congresso Nacional da Frente Parlamentar
Mista em Defesa da Previdência Social quando presidiu a Associação Nacional dos
Auditores Fiscais da Receita Federal (Anfip) de 2015 a 2017, atualmente é um
dos coordenadores dos Estudos Socioeconômicos da Anfip e integra o Conselho
Deliberativo da Associação Brasileira de Imprensa e a direção da Associação
Gaúcha dos Auditores Fiscais da Receita Federal. “O governo, ao querer
direcionar as alternativas de renda ao fim da vida laborativa para serem
geridas por bancos e financeiras, merece um novo lema”, ironiza ele nesta entrevista.
Extra Classe – Em que
aspectos a proposta de reforma da Previdência desarticula a estrutura de
proteção social dos brasileiros instituída pela Constituição de 1988? Vilson
Romero – Entendo que o termo correto nem seria “desarticula” e sim “desmonta”,
“implode” a Previdência Social pública e solidária construída a partir de 1923,
mas consolidada no Estado do Bem-estar Social tupiniquim com a instituição do
Sistema de Seguridade Social, trazido pela Constituição Cidadã de 1988. E a
destruição de tão relevante instrumento de redistribuição de renda ocorre, em
especial, por duas medidas trazidas por esta proposta de emenda: a
desconstitucionalização e a abertura para a capitalização.
EC – Por que é
importante o regramento constitucional do sistema de Seguridade? Romero – É
fundamental que as garantias de proteção social estejam inseridas no texto
constitucional, senão o livre arbítrio de estabelecimento de parâmetros ao bel
prazer do inquilino do Palácio do Planalto, por legislação complementar, aprovável
por quórum da metade mais um dos membros do Congresso, trará insegurança
jurídica sem precedentes na recente história nacional.
EC – Quais são as
consequências para os trabalhadores? Romero – Se prosperarem as mudanças, com a
indesejada promulgação da Emenda Constitucional, nos termos apresentados, os
trabalhadores da iniciativa privada e do serviço público viverão com uma
“espada sobre suas cabeças”, sempre sob a ameaça de mudanças de regras de
concessão, com novas idades, novas carências, novos valores e novas exigências
podendo surgir a qualquer momento.
EC – Um dos
argumentos em defesa da reforma é insustentabilidade do sistema. O propalado
“déficit da Previdência” procede? Romero – Se considerarmos os ditames
constitucionais de que a Previdência Social está inserida no Orçamento da
Seguridades Social, tivemos desde 2005 a 2017 superávit anual médio de mais de
R$ 43 bilhões, mesmo considerando as dificuldades econômicas ocorridas em 2016
e 2017.
EC – Então por que o
governo sustenta que o sistema seria deficitário e qual é a conta correta?
Romero – Porque o governo teima em fazer uma “contabilidade criativa” dando uma
“pedalada” na Constituição Federal. No artigo 194 da CF está escrito “a
seguridade social compreende um conjunto integrado de ações de iniciativa dos
Poderes Públicos e da sociedade, destinadas a assegurar os direitos relativos à
saúde, à previdência e à assistência social.” E no artigo 195, há o
complemento: “a seguridade social será financiada por toda a sociedade, de
forma direta e indireta, nos termos da lei, mediante recursos provenientes dos
orçamentos da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, e das
(…) contribuições sociais (Cofins, CSLL, sobre a folha, concurso de
prognósticos e PIS/Pasep)”. Portanto, não há que se falar em déficit num
sistema bancado pela sociedade como um todo.
EC – A ideia do
déficit – amplamente difundida pela imprensa – desconsidera a complexidade do
sistema previdenciário? Romero – Há um conjuntural desequilíbrio nas contas, em
razão da crise econômica que vivemos com dois anos de queda do PIB (2015/2016)
e dois outros de crescimento pífio (2017/2018), recrudescimento da economia
informal, desemprego ou subemprego crescente, elevadas desonerações
tributárias, com índices de sonegação e fraudes sem controle, além de um volume
de dívida ativa previdenciária sem precedentes.
EC – Quais são as
inconsistências do modelo de projeção atuarial que o governo faz para
argumentar que o sistema entraria em colapso em 2060? Romero – A Anfip
contratou uma equipe de economistas e atuários para analisar as projeções que o
governo apresenta a cada ano quando do envio do Orçamento ao Congresso
Nacional. O estudo resultou na publicação “A Previdência Social em 2060: as
inconsistências do modelo de projeção atuarial do governo brasileiro”, na qual
os estudiosos comprovam a insubsistência das projeções e estudos que são
apresentados anualmente.
EC – O sistema
precisa de uma reforma? Qual seria a alternativa? Romero – Com certeza,
precisamos aperfeiçoar a Previdência, tendo em conta a evolução demográfica, as
condições de vida da população, mas não promovendo rupturas, nem alterações
draconianas que satanizem os trabalhadores de quaisquer setores. Sabemos e
temos diversas propostas, junto com movimentos sociais e, inclusive aprovadas
na CPI da Previdência, no lado do financiamento, com eliminação de desvios, de
ralos por onde se esvai o sagrado dinheiro da aposentadoria.
EC – O modelo de
reforma que o governo brasileiro quer implementar é uma derivação do que foi
adotado no Chile sob a ditadura Pinochet, com a colaboração dos Chicago Boys,
dos quais o ministro Paulo Guedes é seguidor. Cabe a comparação? Romero – Com
absoluta certeza, a inspiração maior é o modelo implantado sob o “tacão” da
ditadura do general Augusto Pinochet, no início da década de 80. Naquela época
“menina dos olhos dos liberais”, o Chile colocou em prática algo que só existia
na teoria: cada trabalhador passou a constituir sua própria poupança,
depositando 10% de sua renda em uma conta individual, em vez de ir para um
fundo coletivo. O dinheiro da “futura aposentadoria” passou a ser gerido pelas
Administradoras de Fundo de Pensão (AFP).
EC – A promessa de
aposentadoria com 70% dos rendimentos não se concretizou e atualmente a maioria
dos aposentados vive com menos de metade do que recebia na ativa. O que deu
errado no caso chileno? Romero – Deu errado, primeiro, uma regra simples do
mercado financeiro. Quando há compra (procura) de investimentos, com
aplicadores numerosos, esses investimentos (sejam títulos públicos, imóveis ou
ações de empresas) se valorizam. Ao serem geridos, ao longo de décadas, se não
há crescimento econômico ou valorização de ativos, eles têm seu valor mantido
ou em queda. E esta queda se acentua quando, em razão das aposentadorias, há
uma liquidação (venda) desses ativos, na busca de liquidez para garantir
aposentadorias passados mais de 30 anos do início das aplicações. Um outro fato
é que talvez não tenha sido dosada corretamente e atuarialmente embasada a
percentagem da renda a ser aplicada, pois, descontadas as elevadas taxas de administração
das AFPs, pouco sobrou para os trabalhadores chilenos que hoje, aposentados,
penam pelas esquinas, dormem sob viadutos e pontes ou se suicidam, pela
vergonha de não conseguir se manter e aos seus.
EC – O que está em
jogo é o orçamento da Previdência? A quem interessa a reforma e o sistema de
capitalização pretendidos pelo governo? Romero – Um orçamento que movimenta
mais de R$ 1 trilhão ao ano, se considerarmos INSS, os Regimes Próprios de
União, estados, DF e municípios, mais o sistema dos militares, com certeza, é
ambicionado pelas corporações financeiras nacionais e estrangeiras. E, em
particular, ao pretender direcionar todas as alternativas de alguma renda ao
fim da vida laborativa para serem geridas por bancos e financeiras, abre-se uma
janela de “oportunidade enorme”, onde podemos aplicar um novo lema para o atual
governo: “Bancos acima de tudo e lucro acima de todos”.
EC – No Brasil, no
governo de Dilma Rousseff, foi adotado um regime híbrido de capitalização para
a seguridade dos servidores federais. Romero – Na previdência complementar
implementada para os servidores da União (exceto militares) e também instituída
em diversos estados e municípios, a regra, apesar de haver o aporte por parte
do ente público, também nos traz o incerto e o não sabido, porque a única coisa
que é definida neste modelo de previdência é a contribuição. O benefício, só
Deus sabe, se um dia souber, daqui a 20 ou 30 anos. O sinalizado pela PEC 6/19
é ainda muito pior porque não garante o aporte paritário do empregador, seja
ele público ou privado. Ou seja, cada um por si.
EC – A resistência à
reforma da Previdência vem aumentando à medida que a sociedade toma
conhecimento do seu conteúdo? Romero – Com certeza, esta reforma faz com que
trabalhadores da cidade e do campo, do serviço público e da iniciativa privada,
homens e mulheres, trabalhem mais, paguem mais e recebam mais tarde e menos.
Portanto, esclarecendo a sociedade e comparando as regras hoje vigentes e o que
virá com a aprovação da reforma, mais aumenta a rejeição que já se verifica no
seio dos partidos que se uniram para eleger o atual governo.
EC – O que é
necessário para barrar a reforma? Romero – Com certeza, muita mobilização
unificada e, se possível, unitária das entidades representativas (sindicatos,
associações e movimentos sociais), esclarecimentos à sociedade com vídeos nas
redes sociais, debates, seminários, painéis, audiências e atos públicos, mas
acima de tudo, um trabalho articulado e de pressão sobre as bancadas federais
em cada estado, em cada região em cada base eleitoral de deputados e senadores.
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