BLOG DA BOITEMPO
Por Mauro Luis Iasi
Cicatrizes são como
folhas secas: já foram verdes já foram vivas já foram corte já foram dor
Cicatrizes são coisas passadas Que não se foram
O Golpe de 1964 é uma
cicatriz histórica marcada na carne de nosso país e na alma de nosso povo. Uma
marca histórica que nos mantém viva a memória necessária para que jamais se
esqueça e jamais se repita a infâmia cometida.
A tentativa de
ressignificação em curso é mais do que uma desinformação e uma manipulação
grosseira de um fato histórico, é a tentativa de cobrir a infâmia com uma
grossa camada ideológica que tenta acobertar crimes apresentando-os como atos
redentores e encobrindo seu verdadeiro significado, os interesses de classe
envolvidos e os sujeitos que perpetraram a infâmia.
Mas, afinal, por que
seria necessário tal encobrimento? No final da Ditadura implantada em 1964, o
General Golbery operou uma ação que apontava em um sentido diverso do
encobrimento. Dizia à época que era necessário colocar os cadáveres da Ditadura
para fora do armário e operar a chamada transição lenta, gradual e segura que
colocasse um ponto final no evento – daí a concepção da anistia ampla e
irrestrita para quem lutou contra a ditadura, mas também para os carrascos e torturadores.
Tratava-se de colocar à luz do dia para ser vivida e superada a dor do ato
brutal contra um país, para então esquecê-lo.
A catarse do
espetáculo acabou por favorecer os interesses das classes dominantes, uma vez
que o horror dos porões revelados escondia os reais sujeitos do terror. Os
militares foram fiéis executores, mas não passaram de serviçais dedicados de
seus mestres. Os mandantes da infâmia não estavam nos quartéis, nem mesmo no
alto comando das Forças Armadas, estavam em luxuosos escritórios das grandes
empresas monopolistas, no Brasil e nos EUA. O Golpe de 1964 foi um golpe das
classes dominantes, do grande capital monopolista e seus aliados latifundiários
e do imperialismo norte-americano. Tratou-se de um ato terrorista tramado com auxílio
direto da Embaixada estadunidense, do Departamento de Estado dos EUA e da CIA,
executado pelos títeres militares brasileiros.
As denominações
“golpe militar” ou “ditadura militar” ideologicamente cumprem a missão de
encobrir o caráter de classe do golpe e os verdadeiros interesses por trás
dele. Para que tal encobrimento fosse eficaz, fazia-se necessário à cortina
ideológica o pretexto para tão brutal interrupção da institucionalidade
democrática que vigorava. Para isso serviu o caldo de cultura da Guerra Fria, a
luta contra o comunismo, a alardeada ameaça de uma ditadura comunista. Como
sabemos, o golpe foi antecedido por dois movimentos complementares: por um lado
um intenso processo de estrangulamento econômico, por outro um processo de
manipulação política operado por instituições como o IPES e IBAD, numa
verdadeira guerra de contrainformação e propaganda anticomunista, fartamente
financiado por empresários e pelo imperialismo.
Na verdade, o golpe
foi desferido por dois motivos principais: impedir as reformas de base do
governo Goulart que se chocavam com os interesses da burguesia brasileira e dos
latifúndios, assim como as pretensões do imperialismo estadunidense de se
servir do Brasil como uma área de influencia privilegiada de exportação de capitais
e controle geopolítico; mas também barrar as lutas sociais, operárias,
camponesas que tomavam forma e apontavam para um potencial risco à ordem
burguesa. Aqui é preciso frisar este aspecto: tal risco não passava de um
potencial que podia se desenvolver, longe de ser uma ameaça imediata à ordem
capitalista e uma alternativa remotamente socialista, seja no campo das lutas
sindicais e sociais, seja no escopo das reformas de base. Portanto, como define
Florestan Fernandes, o golpe foi uma “contrarrevolução preventiva”.
Apresentar essa
contrarrevolução preventiva como um desvio, como resultado de uma truculência
militar, uma quartelada, servia aos propósitos de quem queria se livrar dos
operadores para resguardar seus mandantes. Em parte, o processo de democratização
e a anistia lograram este objetivo. O preço exigido pelos militares em troca de
assumir a pecha da infâmia foi que se colocasse um ponto final, uma pedra sobre
o horror. Isto é, uma transição que fosse realizada sem abrir arquivos, sem
julgamentos e sem grandes acertos de contas, permitindo à corporação militar
passar à ordem democrática sem ter que responder por sua responsabilidade
diante do terror.
Por um tempo, o
acordo funcionou. Mesmo os honrados esforços da Comissão da Verdade, com as
reparações às vitimas e seus familiares, foram sempre tutelados e vigiados para
que não extrapolassem os limites da catarse aceitável, mantendo nas sombras as
pistas que levariam aos verdadeiros protagonistas e mandantes, assim como
aqueles que fartamente se beneficiaram do crime. Mas e agora? Com explicar essa
retomada da iniciativa de se “comemorar” a data da infâmia?
Não é possível
entender esse fenômeno se não o inserirmos no quadro geral da bizarrice do
atual governo e do bufão miliciano que o comanda. Aquilo que era apenas uma
cortina de fumaça ideológica, que todos (inclusive os sujeitos da infâmia)
sabem ser mentira, ou seja, a cruzada redentora contra o comunismo e a
corrupção, serviu agora de cobertura para que um desqualificado expulso das
Forças Armadas construísse sua carreira política e para o discurso de ódio que
o levou à presidência. Esse personagem burlesco nunca foi levado a sério pelos
próprios militares (ver, por exemplo, o juízo pouco elogioso que o ditador
Geisel tinha do personagem). Ele servia apenas a um propósito secundário: ser a
versão explícita da extrema-direita que despertaria o ódio irracional contra o
PT para apeá-lo do poder ou constrangê-lo a fim de aceitar os duros ajustes
contra a classe trabalhadora. No entanto, ocorre que a criatura fugiu da
coleira e chegou à Presidência.
Precisamos constatar,
antes de tudo, que ele é um incômodo. Sua total incapacidade de governar, sua
inoperância na condução dos acordos e articulações que de fato o levaram à
Presidência, sua atitude tosca e irresponsável… todos esses elementos têm
marcado com crises quase diárias o andamento do governo, gerando uma
instabilidade crônica. Diante da total incompetência, o bufão resolveu manter a
campanha e o tom da farsa que o elegeu, como denuncia o conservador jornal O
Estado de S. Paulo (apoiador declarado do golpe de 1964 e do golpe de 2016).
Diante da vergonhosa viagem aos EUA e a catastrófica passagem pelo Chile (quase
um “caminho de Santiago” de peregrinação para extremistas de direita), envolto
por trapalhadas diárias da ala psiquiátrica do governo (Damares, Vélez, Araújo)
e pelo desespero do guru econômico Guedes ao ver a reforma da previdência
ameaçada pelo bufão de chinelos e arma na cintura, eis que o presidente resolve
reafirmar o perfil que ele crê que o liga diretamente com as massas
conservadoras por cima e por fora das instituições do Estado, conclamando os
quartéis a fazerem as “comemorações devidas” do golpe de 1964.
Esta é uma ilusão
renitente na política brasileira. Collor, pouco antes de ser impedido,
conclamou as massas a apoiá-lo, mas o exemplo mais próximo se encontra em outro
presidente: Jânio Quadros. Como se sabe, Jânio foi uma invenção da UDN para
chegar à Presidência, na vã ilusão de que poderia usar a seu favor o populismo
tresloucado da figura para ganhar a eleição e depois tutelá-lo no governo,
mantendo-o como figura decorativa. No entanto, como acontece no carnaval, quem
vestia-se de rei acostumou com a fantasia. Jânio tenta um golpe contra a UDN
conclamando o místico apoio do povo que o abandona miseravelmente.
Isolado, atrapalhado
e afogado em sua própria mediocridade, o nosso bufão tenta acenar com um agrado
aos militares, ternamente afirmando que reconhece o que ninguém admite, que
eles foram heróis salvadores da pátria ameaçada, que implantaram uma ditadura
para salvar o Brasil de uma ditadura (como disse o imbecil de plantão alojado
no Ministério das Relações Exteriores), que os torturadores que laceravam a
carne de mulheres e crianças, estupravam, empalavam, passavam corrente elétrica
por testículos e introduziam ratos em vaginas, são heróis incompreendidos que
estavam purgando a carne para nos redimir de nossos pecados.
Entre as muitas
coisas que o miliciano não sabe está quanto seu ato de reconhecimento colocou
os militares em uma situação altamente constrangedora, incômoda e na contramão
de toda a estratégia tão eficazmente construída para ocultar o golpe nas brumas
do esquecimento. Na tentativa de se manter no poder, ele pode ter assinado seu
passaporte para fora do governo em breve. Expor o golpe como espetáculo
catártico tinha um sentido no final dos anos 1970, mas tratava-se de expor para
ocultar. Agora, a exposição tem o mesmo efeito que arrancar a casca da ferida
que estava quase cicatrizando.
A direita brasileira
(não o fantoche da extrema-direita histérica e burra) já se prepara para fazer
o que fez com os militares depois da Ditadura: descartar o instrumento que não
mais lhe serve para preservar seus verdadeiros interesses e de seus patrões
imperialistas. Começou a contagem regressiva para a queda do clã Bolsonaro e de
seu circo de horrores.
Quem o substituir se
empenhará em executar os interesses de seus patrões e tirará da gaveta o
discurso de como as instituições são fortes o suficiente para corrigir seus
próprios enganos. Ninguém pedirá desculpas ou será julgado. Órfãos e viúvas
chorarão copiosamente, Janaína Pascoal vai gritar a Deus que a ilumine enquanto
sacode no ar uma esfarrapada bandeira brasileira do lado de fora da faculdade
de Direito. Alguns desavisados podem até comemorar enquanto um enorme curativo
será colocado sobre uma ferida que insiste em não cicatrizar. Mauro Iasi é
professor adjunto da Escola de Serviço Social da UFRJ, pesquisador do NEPEM
(Núcleo de Estudos e Pesquisas Marxistas), do NEP 13 de Maio e membro do Comitê
Central do PCB. É autor do livro O dilema de Hamlet: o ser e o não ser da
consciência (Boitempo, 2002) e colabora com os livros Cidades rebeldes: Passe
Livre e as manifestações que tomaram as ruas do Brasil e György Lukács e a
emancipação humana (Boitempo, 2013), organizado por Marcos Del Roio. Colabora
para o Blog da Boitempo mensalmente, às quartas. Na TV Boitempo, apresenta o
Café Bolchevique, um encontro mensal para discutir conceitos-chave da tradição
marxista a partir de reflexões sobre a conjuntura.
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