Caio Andrade
Quanto mais se
aprofunda a crise política na Venezuela, mais fica evidente a importância
mundial dos acontecimentos naquele país. O conflito em questão vai muito além
de uma simples disputa pelo poder entre o Nicolás Maduro, Presidente da
República reeleito em maio do ano passado, e Juan Guaidó, líder da oposição,
presidente da Assembleia Nacional e, desde 23 de janeiro, autoproclamado chefe
do poder executivo.
Há muitos outros elementos envolvidos neste processo. Além
do mais, a clara vinculação entre a luta de classes na Venezuela e a evolução
da ordem internacional, bem como as preocupações com o destino do país não são
exatamente fenômenos recentes.
Com efeito, desde o
final da década de 1990, a Venezuela tem se tornado objeto de atenção especial
por parte das tradicionais potências do Ocidente. Naquele período, a grande
burguesia ainda comemorava a derrota do assim chamado socialismo real,
proclamando o que Francis Fukuyama designaria como “O Fim da História”. Acreditava-se
que, com a dissolução da União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS),
teria chegado ao fim a busca por uma sociedade mais avançada e o slogan There
Is No Alternative ¹, atribuído a Margareth Tatcher, passou a ser o lema da Nova
Ordem Mundial. Ou seja, a combinação entre democracia liberal e economia de
mercado representaria o ápice da evolução humana, sendo inútil ou mesmo
prejudicial insistir na procura por novos modelos.
Todavia, antes mesmo
da chegada do século XXI, a realidade já começava a frustrar a euforia
ideológica burguesa, colocando em xeque os postulados do Consenso de
Washington. Enquanto os países que seguiram o receituário do Fundo Monetário
Internacional (FMI) enfrentaram sérias crises econômicas e sociais, com grave
elevação do desemprego e da concentração de renda, a China, que nunca aderiu ao
pressuposto neoliberal do estado mínimo, manteve as maiores taxas de
crescimento econômico do mundo.
Neste período, a
vitória eleitoral de Hugo Chávez na Venezuela, em 1998, constituiu um marco
fundamental para a derrota do neoliberalismo na América Latina. A chegada do
coronel socialista ao Palácio Miraflores inaugurou uma virada na correlação
regional de forças, dando início a uma guinada à esquerda que foi muito além
das fronteiras venezuelanas.
Na sequência,
diversos líderes da esquerda propriamente dita e de um campo progressista mais
amplo também venceram eleições presidenciais nos países vizinhos, fortalecendo
o que alguns pesquisadores chamaram de “Onda Rosa”: Lagos e Bachelet (Chile),
Lula e Dilma (Brasil), Néstor e Cristina Kirchner (Argentina), Evo Morales
(Bolívia), Rafael Correa (Equador), Mauricio Funes (El Salvador), Manuel Zelaya
(Honduras), Daniel Ortega (Nicarágua), Fernando Lugo (Paraguai), Vásquez e
Mujica (Uruguai).
Depois de frustrar
uma tentativa de golpe ² da oposição em 2002, Chávez foi protagonista de
importantes iniciativas no terreno diplomático. Em 2004, na cidade de Havana, o
presidente venezuelano e Fidel Castro criaram a Alternativa Bolivariana para as
Américas (ALBA), acordo pelo qual Cuba forneceria médicos, remédios e materiais
hospitalares à Venezuela que, em contrapartida, forneceria petróleo à Ilha
Rebelde. Sete anos depois, em Caracas, era criada a Comunidade de Estados
Latino-Americanos e Caribenhos (CELAC), desafiando a Organização dos Estados
Americanos (OEA) e, por conseguinte, a hegemonia dos Estados Unidos.
Porém, em meio à
crise financeira iniciada em 2008, os golpes de estado perpetrados em Honduras
(2009) e no Paraguai (2012), já apontavam o início de uma contraofensiva do
bloco formado pelas elites locais, em aliança com a Casa Branca. Em seguida, a
morte de Hugo Chávez, em 2013, configurou mais um duro baque à Revolução
Bolivariana e às iniciativas contra-hegemônicas de integração latino-americana.
Desde então, Maduro assumiu o desafio de dar continuidade à política
anti-imperialista inaugurada por seu antecessor, em condições cada vez mais
adversas.
Esta não foi a única
mudança importante ocorrida na América Latina nos últimos anos. A partir de
2013, nas Jornadas de Junho, o ciclo petista começou a dar os primeiros sinais
claros de esgotamento. Depois de uma vitória apertada contra Aécio Neves no
segundo turno, em 2014, o PT subiu no cadafalso montado por Sérgio Moro
(Operação Lava Jato), em ação combinada com as grandes empresas de comunicação
do país e, por fim, com movimentos de direita como o Movimento Brasil Livre
(MBL). Enquanto isso, na Argentina, o neoliberal Mauricio Macri vencia o pleito
presidencial de 2015.
Em 2016 o golpe
parlamentar encetado contra o mandato de Dilma apeou o PT do Palácio do
Planalto, cabendo a Michel Temer a tarefa de iniciar uma guinada à direita. Em
2018, o conservador Iván Duque elegeu-se presidente da Colômbia. No Brasil, a
eleição do político de extrema direita, defensor da ditadura militar, Jair
Bolsonaro, radicalizou o fechamento de um período político na América Latina. O
refluxo da onda progressista iniciada ao final dos anos 1990 isolou e
fragilizou os governos de esquerda que ainda resistem à nova conjuntura.
Especialmente a Venezuela, que se tornou uma peça ainda mais central no atual
xadrez geopolítico.
A derrubada de
Maduro, conforme propõe o Grupo de Lima, significa muito mais do que uma
“mudança de regime” na Venezuela. Estão em jogo, na verdade, três grandes
questões:
1) Unipolaridade x
Multipolaridade – A existência de governos não alinhados aos EEUU no continente
Americano, sobretudo o caso emblemático da Venezuela, fortalece a “causa
multipolar”, ou seja, fortalece estrategicamente os países interessados na
quebra da supremacia militar, política e econômica exercida pela Casa Branca no
mundo, notadamente China e Rússia. A queda de Maduro é decisiva para
ressuscitar a velha Doutrina Monroe ³.
2) Petróleo – A
Venezuela possui as maiores reservas de petróleo do mundo, mais de 300 bilhões
de barris. Maior importador do óleo no planeta, os EUA tem interesse direto na
obtenção de petróleo venezuelano a baixos custos. Maduro representa um
obstáculo nesse sentido, ao contrário de Guaidó, que além de refazer a lista de
parceiros comerciais prioritários da Venezuela, pode alterar o destino dado
internamente à renda obtida com a exportação da commodity, sobretudo diminuindo
a oferta de serviços públicos gratuitos e políticas sociais para atender as
demandas do empresariado no país.
3) Cuba – A parceria
entre Cuba e Venezuela, em vigor desde 2004, tem sido fundamental para a
recuperação econômica da Ilha, bastante prejudicada com o isolamento decorrente
da extinção de seu maior parceiro, a URSS, em 1991. Em função de sua exiguidade
territorial, Cuba tem grande carência de fontes de energia. Somado a isso, o
bloqueio econômico realizado pelos EUA desde os anos 1960 impõe sérias
restrições à Revolução Cubana. Deste modo, o petróleo fornecido pela Venezuela
em troca dos serviços médicos de Cuba é essencial para a manutenção do
socialismo no país governado por Miguel Díaz-Canel. Ou seja, é estratégico para
os Estados Unidos e seus satélites que o Miraflores seja ocupado por políticos
alinhados ao Ocidente capitalista, comprometendo a parceria com Cuba e
estrangulando economicamente a Ilha que teima em mostrar para o mundo que outro
tipo de sociedade é possível.
1 – Em português,
“Não Há Alternativa”.
2 – A esse respeito,
é muito importante conferir o documentário “A Revolução Não Será
Televisionada”, disponível no link https://www.youtube.com/watch?v=MTui69j4XvQ
3 – Conferir “Moscou:
declaração de Bolton sobre Doutrina Monroe é um insulto a toda América Latina”,
disponível em https://br.sputniknews.com/americas/2019030413428932-eua-bolton-venezuela-doutrina-monroe-lavrov-america-latina/
Publicado em 10 de março de 2019
Nenhum comentário:
Postar um comentário