segunda-feira, 18 de fevereiro de 2019

Para o jurista Maierovitch, de certa forma, pacote de Moro dá a Polícia “Licença para Matar”



Jurista Walter Maierovitch (*)
  Blog do  Morris Kachani
  18 Fevereiro 2019 | 12h59




Mas afinal, o pacote anticrime e anticorrupção apresentado pelo ministro Sergio Moro dá licença para matar, como se anda dizendo por aí? Para o jurista Walter Maierovitch, de certa forma, sim.
E há outras pedras no caminho do estado democrático de direito que emanam das propostas, como as execuções provisórias.

O ponto positivo fica por conta de uma legislação mais específica contra o crime organizado e a corrupção.
Já a implantação da barganha como forma de encaminhar os processos criminais é uma boa ideia, porém poderia ser melhor formulada.
Que achou do pacote anticrime e anticorrupção apresentado pelo Ministério da Justiça?
O pacote vem cheio de medidas boas mas com algumas muito preocupantes. Tem algumas coisas de que não gostei. Como o absurdo da prisão do júri popular, por exemplo.
Nada contra, até gosto da participação popular. No Brasil, todos os crimes intencionais contra a vida, como homicídio, indução ao suicídio, aborto, infanticídio, passam pelo tribunal do júri popular, onde  7 (sete)   jurados decidem soberanamente.
Minha crítica ao júri brasileiro é por se tratar de um modelo em que os votos acontecem na base do sim ou não, sem dizer o por que. É um absurdo alguém ser condenado na base do sim ou não.
É um tribunal anacrônico, aqui. Que tem uma jurisprudência que mostra que ele reage emocionalmente e flutua de região para região. Nos casos de crimes passionais, por exemplo, o que prevalece é a tese de legítima defesa da honra, e o que acaba acontecendo na grande maioria dos casos, é que o sujeito é absolvido. São marcantes as absolvições pelo país afora. Isso nada mais é do que o sujeito sendo traído, buscando justiça pelas próprias mãos e sendo absolvido.


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A absolvição predomina nos outros casos ou apenas em crimes passionais?
Atualmente, atendendo ao clamor da sociedade, o tribunal de júri tem condenado até a própria sombra, o que também é alarmante. Existe uma ética ambígua, entende?
E o que o pacote de Moro modifica?
Há um atraso, um retrocesso perigosíssimo, que envolve a questão de liberdade. É que pela proposta, o réu que responde em liberdade ao processo entra solto e sai preso caso seja condenado pelo júri popular.
E o que há de errado nisso?
É uma forma de execução provisória. Até agora se o réu estivesse em liberdade e fosse condenado, poderia apelar para instância superior em liberdade. Então esta proposta dá mais poder para o júri, o que é uma coisa temerária. Agora a moda é prisão, prisão, prisão.
E o projeto de execução provisória de sentença condenatória confirmada em segunda instância, como por exemplo no caso do Lula?
Todo mundo sabe que a justiça é lenta, morosa, eu diria que em ritmo de lesma reumática. Os processos demoram e a credibilidade da justiça fica afetada. Um processo pode facilmente levar 10, 20 anos, para ser concluído. Mas ao invés de corrigir a duração média de um processo, se inventa a execução provisória.
Existe uma regra constitucional pétrea que é o princípio de presunção de inocência. A outra tese, é de que não se deve aplicar esse princípio quando a matéria já está decidida e não pode ser alterada por tribunais superiores. Então de um lado temos a presunção, e de outro questões de fato já julgadas que não serão reanalisadas por um tribunal superior ou mesmo pelo STF.
O problema é que isso não é verdade. Um tribunal superior consegue habeas corpus de ofício para execução penal, evitando um constrangimento ilegal. Existem infinidades de recursos dentro destes tribunais.
Portanto a questão central é o tempo de duração de um processo no Brasil. É muito lento e é um problema, porque os crimes podem ser prescritos. É exatamente a morosidade que leva à impunidade, e é isso que Moro deveria combater.
Como enfrentar esse problema? Com execuções provisórias? Não.
São muitos graus e instâncias aqui no país. A solução que eu esperava de Moro era a diminuição do tempo de duração do processo.
E a política de barganha?
95% dos processos nos Estados Unidos são resolvidos através da política de barganha. Os americanos inventaram a barganha como forma de combater a morosidade e a prescrição. É a “plea negotiation”, onde o réu faz um acordo com a acusação e isso resolve o processo. Por exemplo, o assassino de Martin Luther King. Foi acusado de homicídio, e seria condenado à câmara de gás. Mas assumiu, fez acordo e pegou a pena de prisão perpétua.
O problema no pacote do Moro é que a possibilidade de barganha só está prevista para crimes com penas inferiores a 4 anos. É um nada. O alcance acaba ficando muito pequeno. Nos Estados Unidos, este instituto cabe para tudo.
Falemos das medidas positivas.
Há medidas positivas evidentemente. Com relação à criminalidade organizada o pacote adota um modelo de legislação que nomina a máfia. Moro fala textualmente sobre o PCC e o Comando Vermelho, o que é algo positivo.
Gosto também do dispositivo que diz que nos crimes de corrupção o regime inicial de cumprimento de pena deve ser fechado. Nossa legislação com relação a isso é antiga, as penas são baixas neste tipo de delito, e corrupção é um crime gravíssimo, afeta a população diretamente. A pessoa não pode ser condenada e pegar um regime semi aberto ou aberto.
Onde as milícias se encaixam nesse quebra-cabeça?
Aqui você encaixa o conceito de pré-máfia, que vem a ser uma organização que tem território, projeção social, hierarquia interna, e regras próprias que impõem a lei do silêncio, difundindo o medo. Podem até ser interfronteiriças. Mas não são transnacionais. No Brasil temos pré-máfias, não temos máfia ainda.
As milícias do Rio nunca tiveram influência eleitoral? Salta aos olhos, mas não se apura. O PCC já teve dois candidatos. Hoje apoia vários políticos.
Qual o papel do ministro em um caso como o do Flávio Bolsonaro?
Vamos primeiro analisar as respostas das autoridades, que disseram que o filho do presidente não faz parte do governo. Isso não casa com a realidade. Os Bolsonaro ainda não descobriram que governo é uma coisa, e família é outra.
E a denúncia partiu do Coaf. O Coaf é uma agência de inteligência financeira importantíssima, que está ligada ao Ministério da Justiça. Um órgão que detecta, fiscaliza e informa as autoridades competentes. Como ministro, Moro deve estar atento para que o Coaf, assim como a PF, possam agir com independência.
É possível ser um ministro apenas técnico, sem se envolver com a política, conforme sugerido pelo próprio ministro?
O ministro deve ser um defensor do estado democrático de direito, e exercer esse papel é uma questão política.
Paralelamente, outro processo que vai se desenhando no momento é um embate entre o STF e o senado.
Sim, algo que não deveria ocorrer em um estado democrático de direito. E ocorre porque estão se verificando alguns desvios.
Aí aflora a bobagem dita pelo Toffoli, de que o Judiciário seria uma espécie de poder moderador. Se você pegar a doutrina do poder moderador, ela o define como sendo um super poder que resolve questões conflituosas dos outros poderes.
No Brasil republicano isso não existe. O que existe é a tripartição de poderes independentes e anônimos.
Teremos um poder moderador que decide pelos outros? O Judiciário quer estar acima dos demais poderes… Este é um besteirol e a gente sente uma primeira influência dele na eleição do senado.
E digo mais, apesar de se tratar de um órgão colegiado, no STF proliferam as decisões monocráticas.
Então a situação pode se tornar ainda mais conflituosa.
Onde fica o ministro da Justiça nesse embate?
Nas reuniões, o ministro da Justiça é o primeiro que senta ao lado do presidente por tradição, porque é quem lhe dá orientação jurídica.
Existem ministros que foram mais interlocutores do governo, e outros que foram menos. Pelo que o Moro disse, é cada vez mais distante a possibilidade de que se torne interlocutor do governo. É uma opção dele. Estas questões irão para a Casa Civil, não para o espaço do ministério.
Sobre o impasse criado por Gilmar Mendes, houve silêncio. Coaf, silêncio absoluto, quando ele teria que prestigiar este órgão que está sob sua tutela, importantíssimo no combate a lavagem de dinheiro.
Como enxerga a ideia de cassação de ministros do Supremo? Não é preocupante?
Hoje um ministro é muito blindado. O impeachment é cabível, vários pedidos foram feitos, mas quando Renan Calheiros presidiu o Senado, arquivava. Ele era o primeiro a receber e liminarmente, sem plenário, arquivava. 
Circulou a notícia de que Renan era o candidato de Toffoli e Gilmar. 
Não sei se isso é verdade, mas que Renan sempre usou a gaveta para ficar de bem com o Judiciário, sempre usou.
E o Conselho Nacional de Justiça?
Existe uma decisão do próprio STF, de que o Conselho Nacional de Justiça deveria funcionar como um órgão de controle externo da magistratura. Mas ele se tornou um órgão de controle corporativo, visto que os fiscais são os próprios juízes.
Você vê o futuro com bons olhos?
Não. Vejo um Supremo precisando de alterações. Tudo vai ao Supremo hoje, até questões não constitucionais. Há intromissões, o STF precisa estabelecer suas próprias regras. Eu por exemplo sou a favor de um mandato por tempo certo, sem direito a recondução.
E Sergio Moro como ministro?
Moro é um homem correto, foi um bom juiz, no sentido de que é preparado juridicamente para fazer a análise de provas. É uma pessoa sensível, que tem posição humanista. Considerado pela magistratura inteira como sendo um bom juiz. Ele deixa a carreira, abre mão de 26 anos de magistratura, se exonera e vai para um cargo político. Isso é um problema pessoal dele. Você pode dizer, puxa, ele largou a carreira, não vai ter aposentadoria… Eu achava que esperar vaga no Supremo tinha mais a ver com o ambiente dele. Bem, agora nesta função, ele tem experiência na área de crime organizado para se sair um bom ministro, mas não tem vocação para se meter em questões de política partidária.
Por fim, voltando ao pacote. Há quem diga que ele dá licença para matar.
O direito de punir é do Estado e indelegável. O que o Estado permite é o direito de defesa. Assim mesmo diz que só não haverá crime quando a agressão é injusta, iminente e, na reação defensiva, se usada com moderação dos meios e instrumentos necessários.
Essa fórmula é adotada nos códigos penais ocidentais. E sempre se mostrou suficiente para caracterizar a legítima defesa e deixar claro que permite a defesa e não o ataque.
Erra o Moro em querer criar uma nova fórmula e “ad hoc” (para policiais). A fórmula que existe é suficiente. E a lei vigente admite, no que toca ao uso moderado dos meios necessários, o excesso culposo – falta de moderação e instrumentos desnecessária empregados com imprudência, negligência e imperícia.
Moro, a respeito do excesso, cria situações incompatíveis com a formação de um policial. Dizer que ele pode se exceder por “medo escusável”, por “violenta emoção” e por ter sido surpreendido, é algo que não deveria fazer parte de seu ofício. Eles são treinados para isso. Em conclusão: o pacote Moro, neste particular de se isentar de pena ou reduzi-la em metade, é uma contradição.
Outro ponto é referente à proposta de ampliação da legítima defesa em caso de prevenção a conflito armado e risco de conflito armado. Da maneira como está redigido abre caminho para, a título de prevenção, se atuar em ataque e não em defesa. Se prevenir e se evitar um risco vai num subjetivismo que uma lei não pode contemplar. E muitos policiais podem fazer a leitura do permissivo como “licença para matar”.
Em resumo: as duas hipóteses são temerárias. Pior ainda, espelham o discurso de campanha, populista e incivilizado, de Bolsonaro e do atual governador do Rio. Atenção: só se muda uma lei para melhorá-la, o que não é o caso para o “excesso” e para as duas espécies em caso de conflito armado ou risco dele. Uma involução.

(*) Maierovitch é desembargador aposentado do Tribunal de Justiça de São Paulo. Estudioso do processo mafioso, chegou a trabalhar com o célebre juiz italiano Giovanni Falcone, antes que este fosse dinamitado, em 92. Fundou e preside o Instituto Brasileiro de Ciências Criminais, que leva o nome de Giovanni Falcone. Foi secretário nacional antidrogas da Presidência da República (1999-2000).




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